"Desde que o poder legislativo sabe respeitar e cumprir sua augusta missão,
e por isso mesmo sabe fazer-se respeitar,
ninguém se anima, nem pode animar-se a contrariar seu impulso animador e benéfico;
quando porém ele é o primeiro a curvar-se ante os ministros,
pode contar certo com a sua degradação,
e a sociedade com o abatimento de suas liberdades"
(Pimenta Bueno)
INTRODUÇÃO
O estudo do direito político tem como objeto principal a análise da conquista e exercício do poder, mediante os atos jurídico-políticos expedidos pelos titulares dos órgãos superiores do Estado. Ao se mecionar o poder do Estado, sempre vem à baila a discussão da sua organização e do seu exercício, sobretudo o princípio da separação de poderes, que, como assinala José Alfredo de Oliveira Baracho, vem ao longo da história recebendo as mais diversas interpretações.(1)
Ao se analisar os atos do executivo com força de lei nas constituições autocráticas brasileiras faz-se um corte metodológico significativo, qual seja, o de interessarmo-nos apenas por aquelas ordens constitucionais na qual o elemento democrático fora desprezado, quer no processo de feitura do texto constitucional, quer no regime político no qual se vivia.
Certa dificuldade encontra-se no segundo império, pois palmilhava-se a consolidação de uma democracia, para os padrões da época. Bem ou mal, havia a disputa dentro das regras constitucionais pelo poder. O fiel da balança era o Imperador, titular absoluto do poder moderador, que, nos momentos delicados, fazia valer sua vontade régia. Se a Constituição do Império teve um nascedouro autocrático, não se pode olvidar que preenchia ela a função de coordenar o exercício e as disputas pelo poder, que se dava dentro do parlamento.
As outras duas constituições analisadas também se originaram de atos anti-democráticos. A de 1937 para instituir um "Estado Novo", entretanto, não passou do nominalismo constitucional, não tendo repercussão alguma, pois não interessava ao Chefe do Poder efetivá-la, salvo naquilo que lho aprouvesse. A de 1967 só passou a ter algum valor após a Emenda Constitucional nº 1 de 1969, esta que foi editada por uma Junta Governativa usurpadora do Poder Constituinte, como soe acontecer com todas as constituições anti-democráticas. Diz-se anti-democrática porque não houve participação alguma da sociedade ou de outras forças políticas, exceto dos detentores do poder. Nestas duas últimas, o Governo (Poder Executivo) usou dos Decretos-lei para exercer a função legislativa, sendo que no período do Estado fazia sentido, já que o parlamento não funcionava; no período da EC-1º parlamento funcionava, contudo, a função legislativa foi amplamente exercida pelo Governo, com a chancela do órgão legislativo.
Neste trabalho, procurou-se dar um enfoque maior aos aspectos políticos que antecipavam a expedição dos sobreditos atos, fazendo-se um ligeiro relato histórico, a fim de situar o leitor nas circunstâncias e motivos que ensejaram determinadas posturas políticas dos que lidam com o poder, seja exercitando-lhe, seja combatendo-lhe. Espera-se ter feito uma análise política de atos que, não obstante forjadores de relações jurídicas, detinham um caráter político espantoso, no sentido de vinculados, única e tão-somente, à discricionariedade do detentor do poder executivo.
O fato interessante a ser gizado, é a da própria feitura de uma constituição por quem não tinha o menor interesse em respeitá-la. Entretanto, precisava-se dar a aparência de constitucionalidade aos seus atos, para não instar a desobediência civil, pois, apesar de todos os percalços, os textos constitucionais sempre gozaram de um supremacia política, aos olhos da sociedade.
I. A CARTA IMPERIAL DE 1824
1. ANTECEDENTES HISTÓRICO-POLÍTICOS
É fora de toda a dúvida que a tempestade revolucionária ocorrida nos fins do século XVIII, tanto nas treze colônias inglesas da América do Norte, quanto em França, inspirada pelo Iluminismo, tinha no absolutismo monárquico o alvo a ser destruído. Absolutismo este, que usara e abusara do poder estatal, legitimado e exercido em nome da Providência Divina.
Foram as tintas tricolores da Revolução Francesa que pintaram o quadro político mundial descortinado a partir do final do século XVIII e durante quase todo século XIX. Conquanto a Revolução Americana tenha sido cronologicamente anterior, a Francesa foi o coroamento do turbilhão de idéias que fervilharam durante todo o século XVIII. Os ventos revolucionários espraiaram-se para toda a Europa, atravessando o Atlântico, inclusive.
No entanto, o liberalismo político, um dos motores da Revolução Francesa, foi postergado, em nome do "liberalismo econômico", com a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder. Imperialista, Napoleão trava guerra com vários outros países europeus, na tentativa de subjugá-los. Dentre esses, Portugal. A iminente invasão bonapartista no território lusitano enseja a fuga da família real para a sua colônia mais próspera, o Brasil. Assim, em janeiro de 1808, aporta em terras brasileiras a esquadra real portuguesa, sob os auspícios da marinha inglesa.
Com a chegada da família real, a rudimentar estrutura sócio-administrativa brasileira é induzida a adequar-se para ser o centro de decisões do Reino português. Aos poucos, sedimenta-se a idéia de autogoverno nas elites políticas brasileiras, que tinham perto de si o referencial e o centro do poder, a cidade do Rio de Janeiro, diferentemente de outrora, que era Lisboa. Outrossim, o País passa por um surto desenvolvimentista há muito desejado, sobretudo com a abertura dos portos às "nações amigas" e com a criação de instituições financeiras.
Derrotado Napoleão, formada a Santa Aliança, o Reino lusitano tem que se fazer presente no desenho do novo mapa geopolítico mundial. Em 1815, o Brasil é erigido à categoria de Reino Unido de Portugal e Algarves. A partir desse momento, os demais Estados passaram a reconhecer o Brasil como Reino. No ano de 1816, falece a Rainha D. Maria; seu filho, até então Príncipe Regente, é aclamado, em terras brasileiras, como Dom João VI, o "primeiro Rei do Novo Mundo".(2)
Em Portugal, aumenta a insatisfação pela inversão de pólos: o Brasil tornara-se a metrópole, uma vez que os centros do poder e da economia nele estavam. Explode, em 1820, a Revolução constitucionalista do Porto. O Rei é forçado a voltar para Lisboa. Nomeia, então, o filho, D. Pedro como Príncipe Regente do Reino do Brasil.
Os trabalhos da Corte Constituinte do Reino, formada pelos representantes eleitos em Portugal, no Brasil e nos territórios portugueses da África e da Ásia (3), tendiam para o retorno do status quo ante brasileiro. Não obstante os influxos liberais dos portugueses, a situação brasileira trilhava um caminho de volta ao colonialismo. Impossibilitados de rechaçarem esta idéia, houve a defecção dos representantes brasileiros, liderados por Antônio Carlos de Andrada. Após um mês, seria proclamada a independência do Brasil (4).
Assinale-se, por oportuno, que o 07 de setembro de 1822 não foi um momento de rompante. Em verdade, foi fruto do amadurecimento dos sentimentos anti-absolutistas e nativistas brasileiros, aflorados inicialmente na Inconfidência Mineira. Além de que, mesmo antes de proclamada a independência - pelo menos formalmente - foi convocada, em 03 de junho de 1822, uma "Assembléia Geral Constituinte e Legislativa". O Decreto convocatório desta "Assembléia Constituinte" é tido como um dos gérmens do direito constitucional positivo brasileiro. Nele assentava-se constitucionalmente a independência brasileira, faltando apenas o grito simbólico, brandido, três meses depois, às margens do Ipiranga.(5)
A primeira Assembléia Constituinte brasileira, intitulada de "Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil", instalou-se a 03 de maio de 1823, sob a presidência de D. José Caetano da Silva Coutinho. Contou, na sessão de abertura dos trabalhos, com a presença de D. Pedro I. Este proferiu a fala inaugural da Assembléia, denominando-se Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, dizendo que "defenderia a Pátria, a Nação e a Constituição, se fosse digna do Brasil e de mim".(6)
O mal estar causado com o discurso do Imperador foi a tônica dos debates travados em sessões posteriores da Assembléia. Enquanto alguns representantes procuravam aclimatar a situação, como os irmãos Andrada, outros constituintes azedavam os discursos, demonstrando as ambigüidades da fala imperial e da limitação imposta aos trabalhos da Assembléia, um atentado contra o soberano poder constituinte, representativo do povo brasileiro, como dito pelo constituinte da época José Custódio Dias.(7) A constituinte padecia de um vício originário: o "soberano augúrio" de D. Pedro I.
Apresentado o Projeto de Constituição ao Imperador, este continha algumas disposições que chocavam-se com os interesses tanto de portugueses radicados no Brasil como os do próprio Imperador, este cioso da enteomania recebida para reger o país. Porquanto estivesse a par das idéias liberais aspergidas pelos movimentos revolucionários da época, o Imperador nutria alguns sentimentos do ranço absolutista, devido ao ambiente no qual fora criado e forjada sua personalidade. Difícil, senão impossível, conciliar idiossincrasias tão díspares.
O estopim para a crise constituinte foi a sova que o boticário David Pamplona recebeu dos capitães Zeferino Freire e Januário Lapa, na noite de 05 de novembro de 1823. Estes pensavam que o boticário era o "brasileiro resoluto", autor de uma série de artigos contra o oficialato português nas Armas do Brasil.(8) O caso tomou conotação política. Na Assembléia Constituinte, eriçados os ânimos, os discursos exigiam enérgicas providências das autoridades. Com as galerias tomadas pela multidão, os oradores ardiam em ataques "àqueles" que atentavam contra a independência e soberania nacionais. O alarido da turba assistente transformou o ambiente em um inflamado palco de discussões.(9)
Insatisfeitos, os oficiais das Armas representaram ao Imperador suas queixas. Este, descontente com os rumos tomados pela Assembléia, apoia-se na substância bélica posta à sua disposição. Instala-se o clima de grande tensão. Os constituintes, em vigília, prevendo o resultado do conflito travado contra o Imperador, permaneceram no recinto, altivos, cônscios da excelsa dignidade dos seus deveres.(10)
O Decreto dissolutório da Assembléia, expedido em 12 de novembro de 1823, foi o "primeiro ato de força" do Executivo ou do já prenhe Moderador. Não apenas legal, e sim constitucional, imposto no Estado brasileiro, atentatório do incipiente Estado de Direito. Utilizou-se do sofisma salvacionista dos perigos iminentes a que estava sujeito o Brasil. Além de que, no malsinado decreto, continha um ato convocatório de uma nova assembléia constituinte, que iria apreciar um Projeto a ser apresentado pelo Imperador, "duplicadamente mais liberal" que o anterior.(11)
Dos constituintes, os Andradas foram os mais perseguidos, ao tempo em que deram a demonstração de fino senso de humor ante os fatos acontecidos: "Conta-se que, ao saírem os deputados, e ao defrontar com uma peça de artilharia, Antonio Carlos tirou-lhe o chapéu e dirigiu-lhe este cumprimento: "Respeito muito o seu poder". Era a ironia do político vencido ao poder reacionário e brutal".(12)
"Uma frase, porém, muito mais forte e de uma psicologia cortante e mordaz pronunciou-a José Bonifácio, quando, preso, foi conduzido ao Arsenal de Marinha. Diz Drumond que, desde a rua Direita até aí, uma multidão de moleques, pagos pelos portugueses, assobiavam, davam vaias e morras com insuportável alarido... À porta do Arsenal os moleques tornaram-se ainda mais insuportáveis, e porque José Bonifácio que ia de sege, não os ouvia bem, ao chegar à porta do Arsenal, desforraram-se de uma maneira estrondosa. Ao som de semelhante música, termina o meu informante, José Bonifácio disse ao general Moraes, que o esperava à porta: "Hoje é o dia dos moleques!".(13)
Encerrava-se o primeiro capítulo da melancólica história político-constitucional brasileira dos atos de força emanados de um Poder contra a legalidade, a legitimidade e o próprio exercício normal das funções de um outro Poder. Neste específico caso, foi até mais grave, posto que atentou-se contra o soberano Poder Constituinte de uma Nação. Doravante, essa prática deplorável não seria tão incomum.
2. A ORGANIZAÇÃO DOS PODERES
A Carta constitucional do Império foi outorgada no dia 25 de março de 1824. Não obstante a gênese autocrática, trazia em seu bojo princípios liberais, sobretudo no concernente aos direitos e liberdades individuais e na divisão e harmonia dos Poderes do Estado, maior garantia daqueles direitos, afirmação contida no próprio Texto.(14)
No "Projeto Antônio Carlos" estava a organização dos Poderes vazada dentro dos preceitos exarados nas demais constituições liberais de então, ou seja, da tripartição dos Poderes.(15) Na Carta outorgada acrescentou-se mais um Poder: o Moderador (16) , que foi divulgado pela obra do suíço Benjamin Constant (17) , como um "poder neutro", cuja missão é a de fazer possível o correto funcionamento dos demais Poderes, sem que se cruzem entre si, conservando cada um em seu lugar. (18)
No concernente aos demais Poderes, a Carta mantinha praticamente a mesma estrutura do "Projeto Antonio Carlos". No Texto imperial, todos os poderes do Império do Brasil são delegações da Nação (Art. 12). A representação nacional, dispôs o Texto, pertencia ao Imperador e a Assembléia Geral (Art. 11).
O Poder Legislativo (19) é delegado à Assembléia Geral com a sanção do Imperador (Art. 13). O Parlamento Nacional é bicameral, composta de Deputados e Senadores. (20) Das atribuições da Assembléia Geral (Art. 15), ressaltam-se duas das mais alta importância: fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las (inciso 8º); e velar na guarda da Constituição, e promover o bem geral da Nação (inciso 9º). Outrossim, não se poderia celebrar sessão em cada uma das Câmaras sem que esteja reunida a metade e mais um dos seus respectivos membros (Art. 23), sendo que os negócios se resolverão pela maioria absoluta de votos dos membros presentes (Art. 25), cujas sessões serão públicas, à exceção dos casos em que o bem do Estado exigir que sejam secretas (Art. 24).
A fim de permitir um desempenho independente e denodado, a Carta garantia a inviolabilidade dos parlamentares pela opiniões que proferirem no exercício de suas funções (Art. 26). Dispunha também que nenhum parlamentar, durante a sua deputação, poderia ser preso por autoridade alguma, salvo por ordem da sua respectiva Câmara, menos em flagrante delito de pena capital (Art. 27), e se acaso algum parlamentar fosse pronunciado, o Juiz, suspendendo todo o ulterior procedimento, daria conta à sua respectiva Câmara, a qual decidirá se o processo deve continuar, e o membro ser ou não suspenso do exercício de suas funções (Art. 28). A Câmara dos Deputados é eletiva e temporária (Art. 35), enquanto o Senado é composto de membros vitalícios, e será organizado por eleição provincial (Art. 40).
O processo legislativo estava inserto no Capítulo IV, do Título IV, sob a epígrafe "Da Proposição, Discussão, Sanção e Promulgação das Leis". Nele configura-se a competência de cada uma das Câmaras para a feitura das leis (21), competindo ao Poder Executivo, através de seus Ministros a proposição que lhe compete na formação das leis, permitindo-lhes assistir e discutir a proposta, vedando-lhes o voto e a presença na votação, salvo se forem parlamentares.
Na percuciente análise da Constituição do Império, Pimenta Bueno, o "constitucionalista do Império", versando acerca do Poder Legislativo, diz que o mesmo "deve ser confiado a uma reunião numerosa de luzes derivadas de todas as localidades, interesses e necessidade, porque as leis dependem, e são o resultado de uma multidão de idéias, combinações e conveniências entrelaçadas, debatidas, e que afinal devem ser preferidas conforme o seu mérito, e no sentido do maior bem social. Não basta, porém, essa condição por si só, nem a divisão em duas câmaras; é de mister circundá-la de outras garantias que ainda mais segurem os direitos da sociedade. A primeira destas garantias é sem dúvida reconhecer que a coroa, que é também um centro de luzes, não deve de modo algum ser excluída do complexo da representação nacional, que pelo contrário deve ter dentro dela o seu Assento. Assim, continua o citado mestre, e com toda a sabedoria, foi o poder legislativo brasileiro delegado à assembléia geral com a sanção do imperador".(22)
Quanto ao Poder Judiciário, ou Judicial, conforme a Carta, sua disposição é no Título VI (Do Poder Judicial), num único capítulo, intitulado "Dos Juízes e Tribunais de Justiça", contido entre os Art. 151 e Art. 164.
Ao Judiciário é garantida a independência, sendo-lhe composto de juízes e de jurados (23), estes se pronunciam sobre o fato, aqueles aplicam a lei (Art. 152). A perpetuidade ou inamovibilidade é outra garantia dos juízes, conquanto possam ser mudados de lugares de acordo com as prescrições da lei (Art. 153). Poderão ser suspensos pelo Imperador por queixas contra eles feitas, garantindo-lhes audiência, e ouvido o Conselho de Estado (24). Somente por sentença perderão o lugar (Art. 155). A magistratura e demais membros do Poder Judicial respondiam legal e moralmente por atos abusivos e prevaricações(Art. 156), assim como por suborno, peita, peculato e concussão, mediante ação popular (Art. 157). Outrossim, como garantia de moralidade, impõe-se a publicidade dos atos judiciais (Art. 159). "A publicidade, leciona Pimenta Bueno, anima as discussões, enfraquece os preconceitos, as intrigas, os empenhos. Os juízes não podem olvidar que os olhos do povo estão sobre eles, e que seus erros ou abusos serão bem percebidos e expostos com energia à reprovação. A opinião pública é o tribunal da responsabilidade moral" (25).
O órgão de cúpula do Judiciário é o Supremo Tribunal de Justiça, composto de juízes letrados, que receberiam o título de Conselheiros (Art. 163). Os magistrados serão nomeados pelo Imperador (Art. 102, 3º). A eles não foi reconhecido o controle de constitucionalidade das leis. A competência de velar a Constituição era da Assembléia Geral. Outrossim, à época, permitir a sindicabilidade judicial nos atos normativos seria um atentado ao princípio da separação dos Poderes, então claudicante, diga-se, em face do Poder Moderador.
O Judiciário tinha uma missão própria; "é ele quem examina a natureza e circunstâncias dos fatos, ou questões de interesse privado e as disposições das leis, ou direito respectivo, e determina, julga, declara quais as relações que vigoram entre essas questões e o direito. Sua atribuição ou missão consiste pois em conhecer das contestações dos direitos ou interesses que se suscitam entre os particulares, e em punir os fatos criminosos pela aplicação das leis civis e penais".(26)
3. DO PODER DO IMPERADOR
Na Carta de 1824, o Imperador enfeixava sob o cetro dois poderes: o Moderador e o Executivo. Este exercitado através dos Ministros de Estado (Art. 102), encarregado da execução das leis, da segurança e gestão da alta administração do Estado. Aquele, delegado privativamente ao Imperador (27), "é a suprema inspeção da nação, é o alto direito que ela tem, e que não pode exercer por si mesma, de examinar o como os diversos poderes políticos, que ela criou e confiou a seus mandatários, são exercidos. É a faculdade que ela possui de fazer com que cada um deles se conserve em sua órbita, e concorra harmoniosamente como outros para o fim social, o bem-ser nacional; é quem mantém seu equilíbrio, impede seus abusos, conserva-os na direção de sua alta missão; é enfim a mais elevada força social, o órgão político mais ativo, o mais influente, de todas as instituições fundamentais da nação", predica Pimenta Bueno. (28)
Contudo, nem todos assim pensavam, para o Frei Caneca, "o poder moderador não era a chave de toda a organização política, mas sim, a chave mestra de opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos" (29).
As afirmações expendidas acima não são de todo erradas, conquanto pareça paradoxal esta afirmação, haja vista o plexo de atribuições (30) que competiam ao titular do sobredito Poder.
Em que pesem as prerrogativas desse Poder, não há o que se afirmar que o seu exercício seja eximido de responsabilidade. Se o monarca é irresponsável, alguém, ou algum órgão, terá que responder por seus atos. Antes da reforma de 1834, com seu Ato Adicional que extinguiu o Conselho do Estado, cabia a este a responsabilidade dos atos imperiais, sobretudo no uso do Poder Moderador. (31) Com essa celeuma, ou seja, a inexistência de um órgão responsável pelos atos do Poder Moderador, necessário se fez encontrar uma solução para tamanho problema. Em 1841, a Lei nº 243, cria o Conselho de Estado, composto de membros ordinários e dos Ministros de Estado (Art. 1º). Neste documento legislativo é novamente atribuída aos Conselheiros do Estado a responsabilidade pelos atos do Poder Moderador. (32)
Em primorosa obra (33) de 1860, o juspolítico Zacharias de Góes e Vasconcelos parteja a tese de que os Ministros de Estado também são responsáveis pelos atos do Poder Moderador, uma vez que não só aconselhou mal a coroa, mas incumbiu-se de, por um decreto, que leva a sua referenda, dar execução ao abuso. (34) Além da responsabilidade pelos atos do Poder Executivo (35) têm os Ministros de Estado que responder também pelos do Moderador; em síntese, são responsáveis por todos os atos do Imperador, exceto daqueles que expressamente não tenham participado, quer nos conselhos, quer na execução.
Na Carta do Império não há referência a atos do Imperador, sejam do Executivo, sejam do Moderador, que tenham a mesma força dos atos legislativos ordinários, como soe acontece em outras Cartas, inclusive na atual Constituição (Art. 62). O que poderia ser concebido como um ato dessa espécie seria o disposto no Art. 179, parágrafos 34 e 35 da Carta Imperial (36) .
Entretanto, não deixemos que a semelhança das palavras confunda com a substância das mesmas. O termo "medidas provisórias" encontrado em ambos os diplomas tem significado próprio em cada um deles. Na atual Constituição, cremos que significa um ato normativo emanado do Chefe do Poder Executivo, em circunstâncias excepcionais de relevância e urgência, com força provisória de lei, que necessita da aprovação do Congresso Nacional para que tenha força definitiva de lei, posto que é convertida em lei mesma; caso contrário, perde sua eficácia desde o momento de sua edição. Na Carta Imperial, o dispositivo significa uma autorização para suspender determinadas garantias individuais, em face de circunstâncias excepcionais, sem mencionar o caráter legiferante do ato. Além de que, seria o mesmo provisório, ou seja, seria uma medida provisória enquanto perdurasse a circunstância motivadora do mesmo. De certo que, o ato imperial tem características similares as do Estado de Defesa (Art. 136) e as do Estado de Sítio (Art. 137) da Constituição hodierna.
II. A CARTA DE 1937: O ESTADO NOVO
1. A queda da "Velha República" e a Constituição de 1934
O período histórico-político que vai de 1889 à 1930, é denominado de "Velha República". Esta nasceu de um patético golpe que destronou a monarquia brasileira em 15 de novembro de 1889 (37). O trono ruiu porque o Império já não atendia aos interesses das elites nacionais, quer a rural, insatisfeita com a abolição da escravatura (1888), quer a urbana e a militar, inspiradas pelo positivismo comteano, supedâneo filosófico do ideal republicano. (38)
Se abolido estava o governo monárquico, contudo, antigas práticas feudais permaneceram no cotidiano da sociedade brasileira. A república não modificou alguns dos perniciosos hábitos políticos desenvolvidos à época do império, apesar dos avanços da Constituição republicana, cujo molde era a Constituição dos Estados Unidos da América. Dentre esses hábitos, registre-se a coerção eleitoral imposta pelos grandes proprietários rurais - os "coronéis" - que se assenhoreavam da livre escolha dos mandatários dos poderes políticos. O País saía da escravidão negra para o servilismo feudal imposto pelos "coronéis".
Em verdade, as principais figuras do quadro político brasileiro eram os Governadores dos Estados, que em face do modelo constitucional federativo, gozavam de enorme poderio eleitoral e político. Dentre esses governadores, dois tinham proeminência ante os outros: o de São Paulo e o de Minas Gerais. Era a política do "Café com Leite", na qual o titular da Presidência da República ora era indicado por Minas ora por São Paulo. (39)
O País iniciava seus primeiros passos rumo à industrialização, e com ela os primeiros movimentos proletários, haja vista o completo abandono estatal em questões sociais. Nos últimos governos, antes da Revolução de 1930, o problema operário não foi solucionado, na prática tratado como uma questão de polícia. Esta visão deformada acelerou a crise revolucionária. Além deste fator, some-se a quebra do acordo da política do "café com leite", para a sucessão presidencial do período de 1930-1934. (40)
O movimento revolucionário eclodido em outubro de 1930, teve como pano de fundo o resultado das últimas eleições para Presidente da República. O candidato da oposição Getúlio Vargas, derrotado num pleito acintosamente fraudulento, aglutinou, em torno de si, importantes lideranças políticas e militares. A tomada do poder foi rápida e sem maiores resistências. Juntamente com vários outros ocupantes de cargos políticos, foi apeado do poder o Presidente Washington Luís. Os militares insurretos, membros da "Junta Pacificadora", entregaram o comando do Governo ao chefe da revolução, em novembro do mesmo ano.(41) A Constituição de 1891 chegara ao seu final, acusada de não atender aos reclamos sociais, cujo eco tornava-se cada vez maior. Como se dependesse apenas de um documento jurídico-político a efetivação das aspirações de uma nação.
O Chefe do Governo Provisório expede o Decreto nº 19.398, de 11 de novembro de 1930, que "Institui o Governo Provisório dos Estados Unidos do Brasil, e dá outras providências". (42) Até a eleição de uma Assembléia Constituinte para o restabelecimento da organização constitucional, o governo provisório exercerá, discricionariamente e plenamente, as competências do Poder Executivo e do Poder Legislativo, dissolvido nas três esferas políticas da República. Outrossim, as garantias constitucionais são espicaçadas, como o Habeas corpus, as garantias dos membros da Magistratura e do Ministério Público; a autonomia dos entes da Federação é aniquilada, através do uso dos Interventores. Enfim, demonstra-se a faceta ditatorial do chefe da Revolução de 30.
Crescente era a insatisfação com os rumos tomados pelo Governo Provisório, sobretudo em face das vexações infligidas aos cidadãos e às próprias instituições. Começam as pressões para a convocação da Assembléia Constituinte, o Chefe do Governo Provisório tergiversa ante esse assunto. No Estado de São Paulo, em 09 de julho de 1932, irrompe um movimento revolucionário que tem a reconstitucionalização do País como estandarte. O Governo central sufoca o movimento, que deitou um número significativo de vítimas, sem contar o prejuízo material advindo do conflito. Não podendo mais conter as pressões, são convocadas as eleições para a formação da Constituinte, que se instala em 15 de novembro de 1933, num ambiente parecido com aquela convocada 110 anos antes, ou seja, a sombra permanente do detentor do Poder Ditatorial. (43)
Em 16 de julho de 1934 é promulgada a segunda Constituição republicana do Brasil, num clima de grande participação popular, uma vez que era o coroamento da Revolução de 1930 e da Revolução Constitucionalista de 1932. Nela estavam consagrados os princípios tradicionais do liberalismo, como a tripartição dos Poderes, vedando-se a delegação de Poderes, os direitos e garantias individuais e, sob a inspiração do constitucionalismo pós-primeira guerra mundial, os princípios caracterizadores de uma nova realidade constitucional, qual seja das normas de conteúdo social, que durante o Estado absenteísta foi tratado como caso de polícia. Era a inserção constitucional do Estado brasileiro em assuntos de grande repercussão social. (44)
Em sendo o Estatuto jurídico-político do poder, a Constituição tem a missão de instrumentalizar a limitação e a racionalização do uso dele. As restrições constitucionais ante às arbitrariedades do poder, nunca satisfazem o detentor deste. Com Vargas não era diferente. A Constituição era um empecilho para o seu despotismo. Além de que, a idéia de transmitir o cargo de Presidente a outrem, também não lhe era das mais agradáveis. Necessário se fazia impedir o desenlace normal dos fatos. Próximo estava o País da escuridão autoritária a ser imposta pelo Ditador.
2. O "Estado Novo" e a Carta de 1937
O "entre-guerras" foi um período de convulsão no cenário político mundial. No palco da política, surgiram novos atores representando interesses os mais variados possíveis. De um lado, havia a democracia liberal (v.g. EUA e Inglaterra); doutro estavam os regimes totalitários, quer de direita (v.g. Alemanha e Itália), quer de esquerda (v.g. URSS). O Brasil patinava numa democracia social, tendendo para um totalitarismo de direita.
Nesse período "entre-guerras", surgiu uma caterva de chefes de Estado, com tendências totalitárias, que marcaram indelevelmente a história deste século: Mussolini (Itália), Hitler (Alemanha), Franco (Espanha), Salazar (Portugal), Pilsudski (Polônia), Stálin (União Soviética) e Vargas (Brasil). Estes homens foram os profetas de um evangelho apocalíptico, aniquilador dos mais comezinhos princípios de respeito à dignidade humana, em nome de uma ordem e segurança sociais.
Com o objetivo de permanecer no poder a qualquer custo, Vargas e os seus áulicos urdiram um sinistro plano para desestabilizar as instituições nacionais. Apoiado pelo Integralismo (45) , que tinha princípios similares ao fascismo italiano, o governo inoculou em alguns setores estratégicos e em alguns segmentos da sociedade o perigo "bolchevique" que se infiltrava no Brasil, que atentaria contra a estabilidade e a segurança nacionais. (46) O conflito travado entre integralistas e comunistas, estimulado e assistido de camarote pelo governo, abre o vácuo para as medidas totalitárias, que receberam franco apoio dos integralistas e de setores reacionários da política e dos militares. (47)
O golpe estava armado, só restava justificar o rasgo à Constituição com uma nova Carta Constitucional. A tarefa de elaborar o Estatuto jurídico do poder, camuflador de uma legitimidade constitucional, coube ao mineiro Francisco Campos. A Carta (48) outorgada em 10 de novembro de 1937, inspirada no modelo constitucional polonês, passou a ser sarcasticamente chamada de "Polaca".
A Carta de 1937 só vigiu em relação às Disposições Transitória e Finais e às disposições castradoras de direitos e garantias individuais, fortalecendo em demasia o poder do Ditador. O artigo mais importante do Texto era o de número 187, que dispunha que a "Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma regulada em decreto do Presidente da República". Este decreto não foi expedido e, por conseguinte, não houve plebiscito algum. De sorte que a Carta foi um instrumento jurídico de livre uso do Ditador, do modo que lhe aprouvesse.
É consabida a influência das idéias fascistas e corporativistas na feitura da Carta de 1937. Nas disposições concernentes ao Poder Legislativo, faz-se menção ao Conselho de Economia Nacional, que ao lado do Presidente da República, colaborariam com a atividade legislativa do Parlamento Nacional. (49)
O Parlamento compunha-se de duas Câmaras: a Câmara de Deputados e o Conselho Federal. Este último fazia às vezes de Senado Federal. Seria composto de representantes dos Estados e dez membros nomeados pelo Presidente da República. A injunção presidencial seria enorme, uma vez que o sobredito Conselho teria a presidência de um Ministro de Estado, designado pelo Presidente da República. A Câmara dos Deputados seria composta de representantes do povo, eleitos mediante sufrágio indireto.
Quanto ao Conselho da Economia Nacional (50), diz-nos Pontes de Miranda que "se bem que tivesse deixado à legislação ordinária a organização corporativa, a Constituição de 1937 criou o Conselho da Economia Nacional e acentuou princípios que nos vieram, em 1934 e pouco antes, do sindicalismo europeu, da orientação social da Constituição alemã e das experiências italianas, dando-se uma solução, ou, pelo menos, prometendo-se em legislação ordinária uma solução, dentro de linhas gerais, ao problema que chamamos, em 1932, "sindicalismo versus Estado", para o qual, sempre que se colimem a mantença do Direito público ocidental e o afastamento seguro das soluções catastróficas, é preciso ter-se em vista que o Estado não pode pronunciar-se a favor de classes, mas, por sua missão mesma, a favor de todas". (51)
Se o Poder Legislativo não chegou a funcionar, enquanto órgão, mas houve a função legislativa exercida pelo Presidente da República, o Poder Judiciário permaneceu funcionando, só que acanhado ante a força subjugadora do Ditador. As garantias inerentes à independência da magistratura sofriam sérias restrições. Era-lhes vedado conhecer de questões exclusivamente políticas, como se estas não pudessem violar direitos. Outrossim, conquanto fosse permitida a declaração judicial de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o Presidente poderia submetê-la ao exame do Parlamento para que o mesmo se pronunciasse quanto à matéria (52). Entretanto, esse dispositivo nunca foi utilizado, como não foi a maioria esmagadora dos dispositivos constitucionais, à exceção, repise-se, dos autoritários.
3. O Poder do Ditador e os Decretos-Leis
A Carta de 1937 tinha somente o ideal de camuflar constitucionalmente o arbítrio praticado pelo Ditador. No período em que deteve o poder, governou o País sob o estado de emergência, fundando os seus atos de acordo com o Art. 180 das Disposições Transitórias e Finais (53) .
Mas só à guisa de esclarecimento, os decretos-leis constantes no corpo permanente do Texto tinham uma natureza diferente daquela dos decretos-leis permitidos pelo Art. 180. Estes últimos, se parecem mais com os decretos-leis do sistema constitucional de 1967/69, que será visto adiante, e com as medidas provisórias do atual sistema. Os decretos-leis mencionados nas disposições ordinárias do Texto tinham uma natureza de delegação legislativa; dependiam de autorização prévia do Parlamento. (54) Se o Parlamento estivesse em recesso o Presidente poderia expedir decretos-leis, excetuando-se determinadas matérias. (55)
O poder que a Constituição delegava ao Presidente fortalecia-o sobremaneira. Estava-se num verdadeiro palídromo constitucional, ou seja, independentemente do lado que começasse a leitura do texto político, desembocaria na relação desigual dentre os Poderes. Apesar disso, toda Constituição, independentemente da quantidade de poder que delegue a qualquer órgão é sinônimo de limitação do mesmo. Assim posto, a efetivação dos dispositivos constitucionais seria uma camisa de força para o arbítrio praticado pelo Ditador.
Pretendendo justificar a o Estado Novo e sua estrutura constitucional, o Ministro Francisco Campos disse que "a transformação operada no mundo pelas grandes revoluções industriais, técnicas e intelectuais mudou o clima político. O conceito político da democracia não era mais adequado aos novos ideais da vida. A liberdade individual e suas garantias não resolviam o problema do homem. Eram ideais negativos, que não garantiam ao indivíduo nenhum bem concreto, seja no domínio econômico, seja no domínio moral, seja no domínio intelectual e político". (56)
Se foram as contingências internacionais que deram impulso para a ação golpista de 1937, não é menos verdadeiro dizer que também foram novas contingências internacionais que sepultaram o Estado Novo. As forças totalitárias de direita foram derrotas, no maior conflito armado da história (1939-1945), no qual dezenas de milhões de vidas foram ceifadas. Paradoxalmente, o Governo brasileiro enviou combatentes para o confronto com os soldados do nazi-fascismo (doutrina que tanto lhe atraía). Essa postura do Governo só ocorreu devido às fortes pressões dos Estados Unidos e da opinião pública nacional, flagrantemente a favor da causa anti-totalitária. Apesar de conjugar doutrinas semelhantes, Vargas teve que ajudar na derrota de Mussolini e Hitler. Era o início de seu ocaso também. (57)
A derrota dos dois maiores expoentes do totalitarismo de direita, representava, pelo menos parcialmente, a vitória da democracia. A situação totalitária no Brasil estava insustentável. O País palmilhava o caminho rumo à democracia. Sentindo que a cada dia aumentava o descontentamento popular com o regime de exceção no qual estava inserto o Brasil, o Ditador resolve, através da Lei Constitucional (58) nº 09, de 28 de fevereiro de 1945, permitir eleições diretas para o Presidente da República e para o Parlamento nacional, com a missão de reformar a Constituição de 1937. Em 28 de maio do mesmo ano, baixou-se o Decreto-lei nº 7.586, regulador das eleições marcadas para 02 de dezembro do corrente.
Lançadas as candidaturas, o Governo sai com o Ministro da Guerra Eurico Dutra como seu candidato. Representando a oposição tinha-se o Brigadeiro Eduardo Gomes. Mas a sombra do Ditador criava uma suspeita em torno da viabilidade do pleito. Surgem manifestações a favor da permanência de Vargas no poder, o "queremismo", que tinham o apoio do comunistas. Havia um desejo governamental de desestabilizar as eleições. (59)
Escarmentados com os arbítrios do Ditador e com a experiência dos fatos pretéritos, as forças armadas depuseram Vargas do poder, em 29 de outubro de 1945. O estopim foi a nomeação do próprio irmão (Benjamin Vargas) para a Chefia de Polícia. Este foi ter com o Ministro da Guerra para urdirem um plano sabotador à Nação. Criou-se um terrível mal-estar. Os Generais do Exército apoiaram unanimemente a idéia de destituir o Ditador. Com a "renúncia" de Vargas, o governo foi entregue ao Presidente do Supremo Tribunal, Ministro José Linhares. Este formou um governo que conduziu normalmente as eleições que se aproximavam. Foi eleito o candidato do Governo Vargas, Mal. Eurico Dutra. (60)
Com a eleição de Dutra e da Assembléia Constituinte, no Brasil descortinava-se um horizonte de tranqüilidade democrática. Contudo, somente nos primeiros anos isso de fato ocorreu. As forças políticas não estavam amadurecidas para o embate dentro da legalidade. Durante a longa noite em que permaneceu adormecida, a democracia não conseguiu ser instilada no espírito das grandes lideranças nacionais. A conquista e o exercício do poder não conheciam limites. Em pouco tempo, estava novamente o País envolto em crises intestinas. Primeiro o suicídio de Vargas, em face das pressões "insuportáveis". Depois, a tentativa de abortar a posse de Kubitschek, em 1955. Posteriormente, a renúncia de Jânio (por causa de "forças ocultas") e, novamente, com a tentativa de impedir a posse do Vice João Goulart, em 1961. Em breve, o País mergulharia na escuridão autoritária. Mais uma vez estariam os brasileiros tolhidos da liberdade, em nome do desgastado discurso da ordem e da segurança.
Ademais, o fracasso das políticas sócio-econômicas que não conseguiram diminuir a quantidade substancial de excluídos e marginalizados no contingente populacional brasileiro, servia de combustível para o aumento das tensões sociais, que punham em conflito os interesses de uma elite política, detentora de poderio econômico, com os interesses de uma parcela esmagadoramente superior. Com o intuito de frear os avanços sociais, as elites político-econômicas do País fizeram da democracia formal, instrumentalizada na Constituição de 1946, uma simples "folha de papel", que foi facilmente rasgada.
III. A CARTA DE 1967/69: O REGIME MILITAR
1. O Golpe de 1964 e a Mixórdia Jurídica
Se no entreguerras (1918-1945) predominou o conflito entre o totalitarismo de direita (nazi-fascismo) e as forças anti-nazistas, que uniram os mais variados matizes ideológicos, até mesmo aqueles similares ao nazi-fascismo (v.g. Brasil), no após Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os dois países (EUA e URSS) que saíram mais fortalecidos politicamente iniciaram a disputa pela hegemonia no mundo. (61)
No Brasil sentiram-se os efeitos do digládio travado entre os interesses daquelas superpotências. De um lado, as idéias de uma "ditadura do proletariado", alardeada pelas Revoluções Comunistas ocorridas depois do êxito da Revolução Russa de 1917. Contudo, o proletariado havia sido neutralizado com a estatização dos sindicatos, ocorrida no "Estado Novo". De modo que a base de atuação das idéias "comunistas", que tinha na União Soviética o paradigma, ficou bastante prejudicada. No flanco oposto, os ideais de um liberal capitalismo, representado com maior proeminência pelos Estados Unidos. Estes últimos ideais recebiam a adesão da plutocracia nacional. (62) Além de que, difundia-se a imagem de que a URSS e seus "satélites" (os Estados que seguiam um modelo político-econômico similar ao soviético) eram anti-democráticos, enquanto que os ideais norte-americanos representavam os verdadeiros princípios democráticos. Assim, a opinião pública era informada dos horrores perpetrados nos regimes "vermelhos".
O Governo do Sr. João Goulart (Jango) teve início no auge da Guerra Fria (63), travada entre os Estados Unidos e a União Soviética, sobretudo ao nível da América Latina, onde há pouco tempo em Cuba irrompera uma revolução anti-imperialista, liderada por Fidel Castro e Che Guevara. A posse de Jango foi conturbada, visto que setores conservadores das elites do País, apoiados por representantes dos interesses do capital internacional, não queriam permitir o retorno ao poder de alguém com uma linha ideológica que, aparentemente, viesse a contrariar sobreditos interesses, principalmente, no tocante à nacionalização dos setores produtivos da economia brasileira. (64)
Para Jango tomar posse, fez-se um acordo, no qual, através da Emenda Constitucional nº 4, denominada de Ato Adicional, instaurar-se-ia o sistema parlamentarista de governo, esvaziando os poderes do Presidente. Na sobredita Emenda constava a convocação de um plebiscito para ratificar o parlamentarismo ou para o retorno do presidencialismo. O fracasso da política econômica do Gabinete foi um dos principais motivados para o retorno do sistema presidencialista. Contudo, não obstante restaurado o plexo de poderes que lhe haviam sido tirados pela Emenda parlamentarista, Jango não conseguiu formar uma coalizão política que lhe desse sustentação no Congresso, que era refratário há múltiplos dos seus projetos, sobretudo no campo sócio-político, no qual contrariavam interesses de setores da elite econômica, desde a rural até os representantes do capital internacional. A disputa política entre o Presidente e a oposição se acirrava. Jango buscava o apoio do proletariado (urbano e rural) - ainda não adequadamente organizado -, e da pequena burguesia, que tinha interesse na diminuição do poderio econômico internacional no País. A oposição, economicamente forte, controlava a maioria do Congresso e dos veículos de comunicação, além de ter a simpatia dos altos comandantes das força armadas. Os últimos atos do cenário político democrático, antes do Golpe de 31 de março, foram o comício da Central do Brasil e a "Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade", esta contrária a Jango, aquele em seu favor (65).
Armara-se o palco. O País mergulhava numa turbulência, na qual Jango não teve habilidade política para contornar a situação, do contrário, muitos de seus atos afugentavam setores de importante substância política. Dentre esses atos de inabilidade política, vê-se claramente a falta de comando nas Forças Armadas, em que era, por parte de setores do governo, incitada para desestabilizar uma das vigas mestras daquelas corporações, a hierarquia. Tais atos causavam enorme insatisfação dentre os oficiais.
Tomemos o testemunho de quem se opunha às medidas do governo Jango, Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho: "Em março de 1964, a situação prenunciava tempestade. A inflação cada vez mais se acelerava, mormente estimulada por medidas demagógicas. A economia regredia, atingida pela inflação, por uma crise de confiança, no futuro, pelas ameaças de socialização. Nas Forças Armadas, especialmente entre os suboficiais e marinheiros, a disciplina se deteriorava acentuadamente. Os esquerdistas agiam livremente, pregando abertamente a mudança de sistema. Goulart, em comício realizado em infração à lei, no 13 desse mês, usava da palavra, anunciando medidas demagógicas e socializantes, sem apoio constitucional. Inclusive, era o Congresso ameaçado, pois, nesse, a minoria, a oposição, denunciava e combatia veementemente o Governo. Era claro, então, que o regime estabelecido pela Constituição de 1946 vivia seus últimos dias. Ou Goulart e seus aliados a violavam, para estabelecer uma ditadura socializante; ou setores a ele hostis, para salvaguardar a democracia, tinham de violar a sua letra, ao menos". (66)
Assim, no dia 31 de março, os comandantes das Forças Armadas se rebelaram contra o Governo. Este, receoso de apoio suficiente para resistir, sai do País, abandonando o cargo de Presidente. Com isso, o Congresso declara vago o cargo presidencial e nomeia para ele o Sr. Ranieri Mazzilli, então presidente da Câmara dos Deputados, seu substituto constitucional. Com essa atitude, pretendia-se camuflar de constitucionalidade a situação vigorante. No entanto, o comando militar da Revolução não estava disposto a entregar o poder a um civil, sobretudo oriundo dos círculos tradicionais da política, fazia-se necessário assumir o controle do poder político, revestido de aparente legitimidade. Editou-se o Ato Institucional nº 1, que era o instrumento jurídico-político dos insurretos para legalizar sua vitória. Nele, mantiveram o texto constitucional vigente, com modificações, sendo que dentre elas, convocava-se o Congresso para, indiretamente, eleger o próximo Presidente da República, que seria, evidentemente, um comandante militar, no caso específico o Mal. Humberto Castello Branco. Assim, com o AI-1 juridicizavasse o rasgo ao texto constitucional, dando-lhe uma aparência de legitimidade. (67)
Com o sobredito ato e muitos outros que advieram, no Brasil houve uma verdadeira mixórdia jurídica, na qual a Constituição e suas Emendas dividiam espaço hierárquico com os Atos Institucionais e com os Atos Complementares que também apareceram disciplinando relações jurídicas. Esses instrumentos (Atos Institucionais e Atos Complementares) feriam gravemente o já combalido sistema constitucional, a Constituição de 1946 de nada mais valia, os atos expedidos pelo Chefe do Poder Executivo tinham maior vigor jurídico. A ordem jurídica nacional estava chafurdada, devido a atuação do Executivo desrespeitando todo o arcabouço sistêmico do ordenamento. O Congresso e o Judiciário estavam acocorados, inermes frente à força do Executivo, que disciplinava quaisquer relações jurídicas, em acintoso desrespeito aos princípios do Estado de Direito, que aquela altura, evidentemente, já não fazia parte da realidade jurídico-política brasileira.
Se os decretos-leis eram instrumentos legislativos ordinários, que poderiam sofrer algum tipo de controle, usados pelo Executivo para ocupar o espaço que caberia ao Legislativo, muito mais acintosos foram os Atos Institucionais e os Atos Complementares, que não eram reconhecidos pelo Texto Constitucional e que gozavam de semelhante hierarquia, senão superior, haja vista a repercussão que causava suas edições. Ao lado do primeiro Ato Institucional (de 9 de abril de 1964), aquele que causou maior repercussão foi o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, aumentou substancialmente a instabilidade política do País, (68) uma vez que transferiu para o Executivo uma gama significativa de poderes, usados de modo arbitrário contra os não simpatizantes do sistema vigente.
Dos poderes auto-conferidos ao Presidente pelo AI-5, figuram a possibilidade de decretar o recesso das Casas Legislativas (Nacional, Estadual e Municipal), intervir nos Estados sem sofrer as restrições constitucionais, suspender direitos políticos, cassar mandatos, suspensão das garantias dos membros do Judiciário e de outros servidores públicos e o confisco de bens. Assinale-se que o habeas corpus estava suspenso nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e economia popular. Ademais, era vedada a sindicabilidade judicial nos atos praticados com no AI-5 e em seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos. Ressalte-se que tais medidas tinham como fundamento assegurar a democracia no País. (69)
2. A Constituição de 1967 e a Emenda nº 01 de 1969
Com a efetivação do Golpe, os seus líderes precisavam juridicizar os seus atos. Mantiveram a Constituição de 1946, que já não atendia aos interesses dos comandantes revolucionários, no sentido de ser o fundamento de validade formal de seus atos. Convocou-se, então, através do Ato Institucional nº 4, o Congresso Constituinte, que teria a missão de promulgar uma nova Constituição ao País. Este Congresso era composto pelos membros ordinários do Congresso Nacional. Sua tarefa foi apreciar o projeto enviado pelo chefe do Poder Executivo. Em 24 de janeiro de 1967 era promulgada a terceira constituição autocrática brasileira, cuja vigência e efetividade foram pálidas, visto que constantemente foi violentada pelos Atos Institucionais e Complementares do Governo.
A ineficácia da Constituição de 1967 era tamanha, que no 17 de outubro de 1969, a Junta de Governo (70) , em face do recesso parlamentar, promulgou a Emenda Constitucional nº1 que disciplinou matérias de todo o texto constitucional anterior, modificando-o substancialmente vários de seus dispositivos. Esta Emenda, mais do que a própria Constituição de 1967, tinha um cariz de absurdo autoritarismo e flagrante ilegitimidade.
Nesse texto emendado, o poder ficou cada vez mais centralizado, tanto horizontalmente (legislativo, executivo e judiciário), quanto verticalmente (União, Estados e Município), nas mãos do Presidente da República. A tripartição de poderes e o federalismo não passavam de disposições formais do texto, de duvidosa aplicabilidade. O chefe do Poder Executivo federal, segundo a realidade político-constitucional da época, era detentor de poderes quase absolutos, uma vez que poderia legislar, através de Decretos-leis e os seus atos de natureza política, que ele mesmo caracterizava como tal, não eram sindicáveis pelo Judiciário, e mesmo que fossem, dificilmente as decisões judiciais contrárias aos interesses políticos dele seriam cumpridas. Vivia-se numa aparente legalidade, legitimada por uma ordem jurídica que, na maioria das vezes, era desrespeitada por seu principal ator: o Presidente da República.
3. O Decreto-Lei
Ausente na Constituição de 1946, devido ao ranço autoritário do Estado Novo, a figura do decreto-lei retorna na Constituição de 1967, sendo fortalecido pela Emenda nº 1, de 1969. Neste tópico, analisar-se-á o disposto na Emenda nº 1, uma vez que foi ela que realmente vigiu até a promulgação da atual Constituição.
No texto da Emenda nº 1, a regulação da matéria está no Art. 55, no quadro disciplinador do Processo Legislativo (Seção V). Dispõe o Texto:
"Art. 55 - O Presidente da República em casos de urgência ou de interesse público relevante e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias:
I - segurança nacional;
II - finanças públicas, inclusive normas tributárias;
III - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos.
§ 1º - Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado.
§ 2º - A rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência".
O ranço autoritário é patente no disciplinamento dos poderes constituídos, sendo mais flagrante com a existência de um instrumento de tal ordem, como o decreto-lei. Espancado da órbita jurídica pelos constituintes de 46, por ser a marca do Ditador. O regime político instituído em 64 necessitava de um instrumento similar, para não dizer igual, e o fez, ressuscitando o instituto do decreto-lei.
Para Flávio Baüer Novelli, os decretos leis são leis em sentido material, que o Poder Executivo expede, nos termos da disposição constitucional com eficácia de lei em sentido formal (lei ordinária), é uma exceção ao principio da separação de poderes admitida pela Constituição. (71)
Geraldo Ataliba demonstra as diferenças entre o decreto-lei e a lei (estrito sentido) quanto: à forma de produção, que da lei é competência do Congresso, enquanto que o decreto-lei é do Presidente; à eficácia, precária e condicional no decreto-lei, sendo imediata e incondicionada na lei; aos pressupostos de legitimação, só urgência ou interesse público relevante no decreto-lei, sendo a discrição política do Congresso os pressupostos da lei; ao objeto (matéria) sobre que pode incidir, segurança nacional, finanças públicas e normas tributárias e criação de cargos públicos e fixação de vencimentos nos decretos-leis, nas leis, qualquer objeto; às limitações, no decreto-lei não criar despesas, na lei nenhuma, exceto as constitucionais; e condições que devem ser observadas ou preenchidas para sua existência e quanto à perfeição, no decreto-lei a aprovação do Congresso, na lei nenhuma. (72)
Ao nosso ver, os pontos que merecem ser gizados são os referentes às matérias que podem ser objeto de decretos-leis e quanto à existência dos pressupostos constitucionais de urgência ou interesse público relevante.
O dispositivo constitucional deu um substancioso elastério para a atuação do decreto-lei no ordenamento jurídico. O regime político, então vigente, tinha verdadeira devoção pelo princípio da segurança nacional. A mentalidade castrense dos detentores do poder, via em todos aqueles que não compartilhassem dos seus ideais como seus inimigos. A ação do governo foi de reprimir, duramente, qualquer foco de resistência ou oposição às suas diretrizes. Portanto, o sentido da locução segurança nacional, motivadora da edição de decretos-leis foi amplamente usado pelo detentor da faculdade de expedi-los, mesmo que muitas vezes de modo completamente vesgo. Tome-se, à maneira de exemplo, a histórica decisão do Supremo Tribunal, julgando o agravo de instrumento nº 40.960 e os recursos extraordinários nº 62.731 e nº 62.739, sendo relator o Ministro Aliomar Baleeiro, que inquina do vício de inconstitucionalidade o Art. 5º, do Decreto-lei nº 322, de 07 de abril de 1967, que nele não viram matéria de segurança nacional, o que era flagrante. (73)
Nos demais casos, finanças públicas, inclusive tributária e criação de cargos públicos e fixação de vencimentos, era claramente percebida, se estavam ou não adstritos os decretos-leis a tais matérias, mesmo assim, vária foi a quantidade de abusos perpetrados por força dos decretos-leis.
Ademais, a existência dos pressupostos ensejadores dos decretos-leis era de complexa aferição, uma vez que no dispositivo constitucional a locução "urgente ou interesse público relevante" dava ensanchas para uma larga interpretação, pois se a urgência era, realmente, limitada o interesse público não o era, pois em todas as ações envolvendo os poderes estatais há o interesse público, ínsito na própria idéia de Poder público.
Doutro modo, os controles jurídicos e políticos sobre os decretos-leis eram dificilmente exercitados, sobretudo este último, posto que o Congresso tinha uma função meramente confirmatória das decisões do Governo, ademais, na dicção do enunciado do Art. 55, no parágrafo primeiro, consta que a não apreciação por parte do Congresso no espaço de 60 dias implicará na aprovação do decreto-lei, que não poderia ser emendado pelo Legislativo, e caso viesse a ser rejeitado, as relações jurídicas ocorridas durante a sua vigência não seriam nulas (§ 2º).
Por essa razão, os governos que estiveram sob os auspícios da Constituição de 1967/69, usaram e abusaram desse instrumento normativo, de cariz autoritário, pois era uma perigosa exceção ao princípio constitucional da separação de poderes, cujo desiderato imediato é garantir a liberdade e os direitos individuais, através do exercício racional do poder estatal e da possibilidade de controle do Poder pelo Poder, através do Direito.
4. A Redemocratização
Logo no início do Golpe, parcela significativa da sociedade brasileira admitiu a deposição de Jango, insatisfeita com os (des)rumos de seu governo. A oposição imediata ao movimento de 64 foi tênue, logo debelada. Entretanto, a sede dos militares pelo poder político, causou desconfiança em vários setores organizados da sociedade civil. Em pouco tempo, surgiram focos mais consistentes de resistência, que culminou com a guerrilha terrorista, modo desesperado de lutar, no entanto, foi uma das vias que os contrários ao regime encontraram. Com a guerrilha, o Governo endureceu a repressão, que, na maioria dos casos, ultrapassou os limites do razoável, com os desrespeitos absurdos aos direitos humanos que foram perpetrados pelos homens do regime.
No período que vai do final da década de 60 ao início da de 70, momento crítico da repressão aos opositores, o País passava por um surto desenvolvimentista substancial, vivia-se o "milagre econômico", que não repercutiu adequadamente na melhoria das condições sociais da maioria da população. A embriaguez nacional aumentara com o efeito da "tequila", pois a seleção de futebol conquistara a Copa do Mundo no México. Em pouco tempo veio a ressaca, tanto econômica quanto jurídica.
Politicamente, o Governo perdia espaço para a oposição, cujo partido (MDB) havia derrotado o partido governista (ARENA) nas últimas eleições da década de 70. Percebendo a falta de apoio popular, o Governo, presidido por Ernesto Geisel, começa um processo de abertura política chamado de "Distensão", cujo objetivo era flexibilizar a ordem política nacional. Advieram a anistia e o fim da censura aos órgãos de imprensa, no final da década de 70 e início dos anos 80. Em 1982 ocorrem eleições gerais, exceto Presidência da República e em áreas tidas como de segurança nacional, nas quais diminui ainda mais a força política do Governo.
Em 1984 é apresentada uma Emenda à Constituição propondo eleições diretas para o cargo de Presidente. A idéia deflagrou uma campanha de repercussão nacional, na qual tiveram comícios populares monstruosos. O povo estava nas ruas exigindo o direito de escolher o magistrado supremo do País. A proposta de emenda foi derrotada no Congresso, mas o sentimento nacional era de fim dos governos militares. Para a suceder à vaga do Presidente Figueiredo (último dos militares), foi composta uma chapa, intitulada de "aliança democrática", formada por Tancredo Neves e por José Sarney, este figura eminente na estrutura política do regime militar. A oposição e uma parte dos governistas se uniram para derrotar o candidato da situação, Paulo Maluf. (74)
Com a vitória da "aliança democrática" no colégio eleitoral, o País ansiava por mudanças. Inesperadamente, Tancredo Neves é internado para tratamento de saúde, vindo a falecer pouco tempo depois, sem ter tomado posse no cargo de Presidente. Assume o Vice José Sarney, embriorinariamente ligado ao regime que deixava o poder. Houve um misto de frustração e expectativa. Sarney mantém muitas das propostas de Tancredo, sobretudo a convocação de uma constituinte, eleita em 1986, com vista a recuperar a legitimidade constitucional, pois, segundo Raymundo Faoro, a mais grave de todas as formas de falseamento da soberania popular é aquela que usurpa a legitimidade, confundindo-a com o poder. (75)
Da obra daqueles constituintes surgiu a atual Constituição de 1988, que trouxe avanços sócio-democráticos de grande valia. Dentre as novidades do novo Texto era o fim dos Decretos-leis, pois estes representavam usurpação da função legislativa, contudo, o que tiraram "com uma mão puseram com a outra", pois instituíram um instrumento jurídico que tinha alcance semelhante, senão superior, aos decretos-leis, as medidas provisórias (art. 62, C.F. de 1988). Doravante, cabe vigiar o uso de sobredito instrumento, que desde a promulgação da atual Carta Política vem sendo abusivamente utilizado pelo detentor de sua competência, o Presidente da República, estando o Legislativo e o Judiciário num perigoso obséquio silencioso, pois que as medidas provisórias são sucessoras de instrumentos que durante longo tempo feriram o princípio da separação de poderes, pedra angular da proteção aos direitos e garantias fundamentais de um Estado que se pretende democrático.
CONCLUSÃO
Ante o acima exposto, em termos de atos do Executivo com força de lei, pode-se concluir o seguinte:
A história político-constitucional brasileira é pródiga em exemplos de intromissão de um Poder nas atribuições de outro, sobretudo no desrespeito do Executivo aos demais Poderes.
A formação ibérica de D. Pedro I, inspirada em ideais absolutistas, foi superior às novas concepções "iluministas" no mundo, que tinham como principal motor a limitação do poder estatal, com a tripartição do mesmo, daí porque não tergiversara ante a idéia de implodir a assembléia constituinte de 1823, e ele mesmo outorgar uma Constituição ao País, como o fez em 1824, dando à Coroa poderes que lhe garantisse a supremacia de suas vontades.
Durante o Estado Novo, a Constituição de 1937 só vigiu naquilo que atendia aos interesses do Ditador Vargas, que legislou mediante Decretos-leis, onde não havia controle algum às vontades do Ditador, nem político com o Parlamento fechado e as lideranças amordaçadas pela censura, nem jurídico com a Magistratura sem instrumentos e sem garantias para fazer valer suas decisões.
A partir do Golpe de 1964 instaura-se uma nova ordem jurídica brasileira, que esteve juridicamente fundada nos Atos Institucionais e, posteriormente, na Emenda Constitucional de 1969. Neste texto ressurgiram os decretos-leis, que tinham como desiderato possibilitar o exercício da função legislativa por parte do Executivo, mediante o controle do Congresso que deveria aprovar ou rejeitar os atos do Executivo com o jaez legislativo. Entretanto, detentor de maioria parlamentar e do poder repressivo, além da sistemática favorável à edição de decretos-leis, o abuso do sobredito instrumento foi flagrante.
Hodiernamente, não obstante vivenciarmos um período de estabilização democrática, temos um instrumento com características similares aos instrumentos passados. Espera-se dos poderes constituídos que saibam se impor ante qualquer tentativa de usurpação de funções constitucionalmente outorgadas, sob pena de voltarmos aos sombrios tempos de Ditaduras Constitucionalizadas.
NOTAS
1. Cf. Teoria da Separação dos Poderes e Funções do Estado. Revista de Informação Legislativa, ano 19, nº 76, out./dez., 1982, p. 106.
2. Cf. Marcelo Caetano. Direito Constitucional, volume I. Rio de Janeiro. Forense, 1977, p. 479.
3. Cf. Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional, tomo I. 4ª edição, revista e actualizada. Coimbra, 1990, p. 262.
4. Cf. Aurelino Leal. Historia Constitucional do Brazil. Reimpressão. Brasília. Ministério da Justiça, 1994, p. 47.
5. Cf. Paulo Bonavides e Paes de Andrade. História Constitucional do Brasil. 3ª edição. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1991, p. 31 e ss.
6. Idem, p. 39.
7. Ibidem, p. 41 e ss.
8. Cf. Aurelino Leal, op. cit., p. 37 e ss.
9. Idem.
10. Ibidem.
11. Cf. Exposição de Motivos do Decreto de 12 de novembro de 1823: "Havendo Eu Convocado, como Tinha direito de Convocar, a Assembléia Geral, Constituinte e Legislativa, por Decreto de três de junho do ano próximo passado, a fim de salvar o Brasil dos perigos que lhe estavam iminentes; e havendo esta Assembléia perjurado ao tão solene juramento que prestou à Nação de defender a Integridade do Império, sua Independência e a Minha Dinastia: Hei por bem, como Imperador e Defensor Perpétuo do Brasil, Dissolver a mesma Assembléia e convocar já uma outra na forma das Instruções, feitas para a convocação desta, que agora acaba; a qual deverá trabalhar sobre o Projeto de Constituição que Eu lhe Hei de em breve Apresentar; que será duplicadamente mais liberal, do que o que a extinta Assembléia acabou de fazer".
12. Cf. Aurelino Leal, op. cit., p. 90.
13. Idem.
14. Art. 9º - A divisão e harmonia dos poderes políticos é o princípio conservador dos direitos dos cidadãos e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece.
15. Cf. Projeto Antonio Carlos. Art. 39º- Os Poderes Políticos reconhecidos pela Constituição do Império são trez: o Poder Legislativo, o Poder Executivo, e o Poder Judiciário.
16. Art. 10 - Os poderes políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brasil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial.
17. Cf. Principes de Politique Constitutionelle, publicados em 1815.
18. Cf. Cláudio Pacheco. Novo Tratado das Constituições Brasileiras. Volume 1. São Paulo. Saraiva, 1990, p. 319.
19. O Poder Legislativo está inserto no Título IV(Do Poder Legislativo), dividido em seis capítulos: Capítulo I (Dos Ramos do Poder Legislativo e suas Atribuições), do Art. 13 ao Art. 34; Capítulo II (Da Câmara dos Deputados), do Art. 35 ao Art. 39; Capítulo III (Do Senado), do Art. 40 ao Art. 51; Capítulo IV (Da Proposição, Discussão, Sanção e Promulgação das Leis), Art. 52 ao Art. 70; Capítulo V (Dos Conselhos Gerais de Província e suas Atribuições), Art. 71 ao Art. 89; e Capítulo VI (Das Eleições), Art. 90 ao Art. 97.
20. Art. 14 - A Assembléia Geral compõe-se de duas Câmaras: Câmara de Deputados e Câmara de Senadores ou Senado.
21. Art. 52 - A proposição, oposição e aprovação dos projetos de lei compete a cada uma das Câmaras.
22. Cf. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Reimpressão. Rio de Janeiro. Ministério da Justiça e Negócios Interiores - Serviço de Documentação, 1958, p. 48 e s.
23. Art. 151 - O Poder Judicial é independente, e será composto de Juízes e Jurados, os quais terão lugar, assim no cível como no crime, nos casos e pelo modo que os códigos determinarem.
24. Art. 154 - O Imperador poderá suspendê-los por queixas contra eles feitas, procedendo audiência dos mesmos Juízes, informação necessária, e ouvido o Conselho de Estado. Os papéis que lhes são concernentes serão remetidos à relação do respectivo distrito para proceder na forma da lei.
25. Cf. Op. cit., p. 328.
26. Cf. Pimenta Bueno, op. cit., p. 318.
27. Art. 98 - O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos.
28. Op. cit., p. 201.
29. Cf. Aurelino Leal., op. cit., p. 134.
30. Art. 101 - O Imperador exerce o Poder Moderador: 1º) Nomeando os Senadores, na forma do art. 43; 2º) Convocando a Assembléia Geral extraordinária nos intervalos das sessões quando assim o pede o bem do Império; 3º) Sancionando os decretos e resoluções da Assembléia Geral, para que tenham força de lei (art. 62); 4º) Aprovando e suspendendo interinamente as resoluções dos Conselheiros Provinciais (arts. 86 e 87); 5º) Prorrogando ou adiando a Assembléia Geral e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos em que o exigir a salvação do Estado; convocando imediatamente outra que a substitua; 6º) Nomeando e demitindo livremente os Ministros de Estado; 7º) Suspendendo os Magistrados nos casos do art. 154; 8º) Perdoando ou moderando as penas impostas aos réus condenados por sentença; 9º) Concedendo anistia em caso urgente, e que assim aconselham a humanidade e bem do Estado.
31. Constituição do Império: Art. 142 - Os Conselheiros serão ouvidos em todos os negócios graves e medidas gerais da pública administração, principalmente sobre a declaração de guerra, ajustes de paz, negociações com as nações estrangeiras, assim como em toda as ocasiões em que o Imperador se proponha exercer qualquer das atribuições próprias do Poder Moderador, indicadas no art. 101, à exceção da 6ª; Art. 143 - São responsáveis os Conselheiros de Estado pelos conselhos que derem opostos às leis e aos interesses do Estado, manifestamente dolosos.
32. Art. 4º - Os Conselheiros de Estado serão responsáveis pelos conselhos que derem ao Imperador, opostos à Constituição e aos interesses do Estado, nos negócios relativos ao exercício do Poder Moderador; devendo ser julgados em tais casos pelo Senado, na forma da lei da responsabilidade dos Ministros de Estado.
33. Cf. Da Natureza e Limites do Poder Moderador. Reimpressão. Brasília. Senado Federal, 1978.
34. Op. cit., p. 53.
35. Constituição do Império: Art. 132 - Os Ministros de Estado referendarão ou assinarão todos os Atos do Poder Executivo, sem o que não poderão ter execução.
36. Art. 179 - A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: omissis...34) Os Poderes constitucionais não podem suspender a Constituição no que diz respeito aos direitos individuais, salvo nos casos e circunstâncias especificadas no parágrafo seguinte; 35) Nos casos de rebelião ou invasão de inimigos, pedindo a segurança do Estado que se dispensem, por tempo determinado, algumas formalidades que garantem a liberdade individual, poder-se-á fazê-lo por ato especial do Poder Legislativo. Não se achando, porém, a esse tempo reunida a Assembléia, e correndo a Pátria iminente perigo e indispensável, suspendendo-a imediatamente, quando cesse a necessidade urgente que a motivou; devendo, em um e outro caso, remeter à Assembléia, logo que reunida for, uma relação motivada das prisões e de outras medidas provisórias de prevenção tomadas; e qualquer autoridades que tiverem mandado proceder a elas serão responsáveis pelos abusos que tiverem praticado a esse respeito.
37. A Proclamação da República teve um mártir involuntário: Patápio Silveira, um carteiro-flautista, desinteressado por política. Na manhã do dia 15 de novembro, passava pelo Campo de Santana, Rio de Janeiro, quando um cadete republicano atirou num almirante monarquista. Assustado, Patápio tentou fugir pegando um bonde que passava e foi parar embaixo das rodas. IN: Almanaque Abril 96. Editora Abril. São Paulo, 1996, p. 58.
38. Cf. Carlos Maximiliano. Comentários à Constituição Brasileira. Quinta Edição (atualizada). Volume I. Freitas Bastos. Rio de Janeiro, 1954, p. 106.
39. Cf. Paulo Bonavides, op. cit., p. 255 e s.
40. Cf. Pinto Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5ª edição, ampliada e atualizada. São Paulo. Saraiva, 1991, p. 58 e ss.
41. Cf. Hamilton Leal. História das Instituições Políticas do Brasil. Reimpressão. Brasília. Ministério da Justiça, 1994, p.451 e ss.
42. Eis um manifesto erro de técnica jurídica, posto que se rompia com a Constituição anterior, não era de bom alvitre continuar a numeração de atos que tinham como suporte jurídico uma norma que já não tinha valor algum, não obstante o art. 4º deste Decreto. O mais adequado era fazer como os insurretos proclamadores da primeira República, que expediram o Decreto nº 01, de 15 de novembro de 1889.
43. Cf. Paulo Bonavides, op. cit., p. 275 e ss.
44. Cf. Paulo Bonavides, op. cit., p. 321 e ss.
45. Movimento político de extrema direita que combatia o "perigo vermelho", ou seja, o avanço de forças socialistas no cenário nacional. Tinham apoio de setores da igreja católica, daí usarem o lema "Pátria, Deus, Família". Cf. Luiz Koshiba & Denise Manzi Frayze Pereira. História do Brasil. 5ª ed., rev. e ampl. São Paulo, Atual, 1987, p. 308 e s.
46. O Plano Cohen, que os integralistas forjaram para justificar a manutenção do Estado de emergência no País. Este plano, segundo a versão oficial, era um plano arquitetado pelos comunistas para tomar o poder através da luta armada.
47. Cf. Hamilton Leal, op. cit., p. 521 e ss.
48. Constituição de 1937: Preâmbulo: O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e de extremação de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; atendendo ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente; atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispunha o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo; com o apoio das forças armadas e cedendo às aspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição de nossas instituições civis e políticas: Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em to o País: (segue o texto da Carta).
49. Art. 38 - O Poder Legislativo é exercido pelo Parlamento Nacional com a colaboração do Conselho da Economia Nacional e do Presidente da República, daquele mediante parecer nas matérias da sua competência consultiva e deste pela iniciativa e sanção dos projetos de lei e promulgação dos decretos-leis autorizados pela nesta Constituição.
50. Art. 57 - O Conselho da Economia Nacional compõe-se de representantes dos vários ramos da produção nacional designados, dentre pessoas qualificadas pela sua competência especial, pelas associações profissionais ou sindicatos reconhecidos em lei, garantida a igualdade de representação entre empregadores e empregados.
51. Comentários à Constituição Federal de 10 de novembro de 1937. Tomo I. Artigos 1º - 37 (Introdução e Organização Nacional). Rio de Janeiro. Irmãos Pongetti Editores, 1938, p. 25.
52. Art. 96 - omissis. Parágrafo único - No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.
53. Art. 180 - Enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-lei sobre todas as matérias da competência legislativa da União.
54. Art. 12 - O Presidente da República pode ser autorizado pelo Parlamento a expedir decretos-leis, mediante as condições e nos limites fixados pelo ato de autorização.
55. Art. 13 - O Presidente da República, nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução da Câmara dos Deputados, poderá, se o exigirem as necessidades do Estado, expedir decretos-leis sobre as matérias de competência legislativa da União, excetuadas as seguintes: a) modificações à Constituição; b) legislação eleitoral; c) orçamento; d) impostos; e) instituição de monopólios; f) moeda; g) empréstimos públicos; h) alienação e oneração de bens imóveis da União. Parágrafo único - Os decretos-leis para serem expedidos dependem de parecer do Conselho da Economia Nacional, nas matérias da sua competência consultiva.
56. Cf. Paulo Bonavides. Op. cit., p. 346.
57. Cf. Hamilton Leal. Op. cit., p. 547 e ss.
58. As Leis Constitucionais são emendas à Constituição. Como o Parlamento não existia, a competência ficou para o Presidente da República, através de uma interpretação estrábica do art. 180, que só falava em decretos-leis. Mas aquela época, pouco valia seguir os ditames constitucionais.
59. Cf. José Dantas. História do Brasil - das origens aos dias atuais. 1ª ed. São Paulo. Moderna, 1989, p. 241 e ss.
60. Cf. Hamilton Leal. Op. cit., p. 547 e ss.
61. Cf. Edward Mcnall Burns e outros. História da Civilização Ocidental - do homem das cavernas às naves espaciais. Título original: Wersten civilizations - Theis history and their culture. Tradução de Donaldson M. Garshagen, 29ª ed., v. 2, São Paulo, Globo, 1989, p. 719 e ss.
62. Cf. José Dantas, op. cit., p. 245 e ss.
63. A Guerra-Fria foi uma disputa pela hegemonia mundial, quer no plano político, quer no econômico, entre as duas superpotências (EUA e URSS) após a 2ª Guerra Mundial. Foi assim denominada por ser diferente dos conflitos tradicionais, uma vez que os dois principais contendores não se enfrentaram diretamente, do ponto de vista militar. Esse novo confronto, quando chegou à situação de envolvimento bélico, ocorreu sempre em outros países, principalmente os do Terceiro Mundo. Posto que um conflito direto entre aqueles dois países colocaria um ponto final na História, pois não haveria sobreviventes para contá-la, em face da substância nuclear, cujo poderio é aniquilador de esperanças. Teve como fim simbólico a "queda do Muro de Berlim", em 1989. Cf. Ricardo - Adhemar - Flávio. História, v. 3, Belo Horizonte, Editora Lê, 1993, p. 357 e ss.
64. Cf. José Dantas, op. cit., p. 260 e ss.
65. Cf. José Dantas, op. cit., p. 263 e ss.
66. Cf. Comentários à Constituição Brasileira, 6ª ed., rev. e atualizada. São Paulo, Saraiva, 1986, p. 13 e s.
67. Exposição de Motivos do AI-1: À NAÇÃO: 1. É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. 2. A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. 3. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças às Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe. 4. O presente Ato Institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa, representada pelos Comandos em Chefe das Três Armas que respondem, no momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do País. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional. 5. Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação. 6. Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de atender aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica resolve editar o seguinte...(seguem os dispositivos do Ato Institucional).
68. Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., p. 30 e ss.
69. Cf. Os Consideranda do AI-5: O Presidente da República Federativa do Brasil, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e Considerando que a Revolução brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, "os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria (Preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964); Considerando que o Governo da República, responsável pela execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas, não só não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional nº 2, afirmou, categoricamente, que "não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará" e, portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido; Considerando que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo Presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar "a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução", deveria "assegurar a continuidade da obra revolucionária" (Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966); Considerando, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la; Considerando que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária; Considerando que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição, Resolve editar o seguinte...(seguem os dispositivos do Ato Institucional).
70. Essa Junta de Governo, composta dos Ministros militares do Governo Costa e Silva, afastado do cargo por motivos de saúde, não permitiu que o Vice-presidente Pedro Aleixo assumisse o cargo de Presidente, e se intitularam como Governo, criando a sobredita Junta. Eram os Ministros Augusto Hamann Rademaker Grünewald, Aurélio de Lyra Tavares e Márcio de Souza e Mello, jocosamente apelidados por Ulisses Guimarães de "Os Três Patetas".
71. Cf. Estudos sobre a Constituição de 1967. Organização Themístocles Brandão Cavalcante e outros. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1968, p. 65.
72. Cf. O Decreto-lei na Constituição de 1967. São Paulo, RT, 1967, pp. 62 e 73
73. Dec.-lei nº 322, Art. 5º "Nas locações para fins não residenciais será assegurado ao locatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condições previstos na lei para as locações residenciais, aplicando-se o disposto neste artigo aos casos sub judice". Cf. Geraldo Ataliba, op. cit., p. 83.
74. Cf. José Dantas, op. cit., p. 267 e ss.
75. Cf. Assembléia Constituinte - a legitimidade recuperada, 3ª edição, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985, p. 81.
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