Imperialismo e Terror de Estado
Série de fatores anunciam o risco de intensificação do terror de Estado no Brasil e no mundo
Matéria publicada pelo Jornal do Brasil do dia 7 de outubro divulgou a participação de um agente norte-americano da CIA – o engenheiro químico Robert Hayes – nas ações de espionagem e repressão contra militantes de esquerda durante o regime militar instaurado no Brasil de 1964 a 1985.
A notícia não chega a ser uma surpresa. De fato, todos já sabiam que o serviço secreto dos EUA atuou diretamente na instalação e sustentação das ditaduras militares vigentes na América Latina durante as décadas de 60, 70 e 80. E, como afirma também na própria matéria a cientista política norte-americana e especialista nas relações entre a CIA e os governos latino-americanos, Marta Huggins, outros agentes do serviço de espionagem vieram ao Brasil com a mesma finalidade que Robert Hayes.
Entretanto, apesar de não ser uma surpresa, a notícia nesse momento em especial tem um importante significado. Serve para trazer à tona uma série de reflexões sobre alguns fatores aparentemente isolados do período atual, mas que, na realidade, estão relacionados entre si.
Torturadores ainda no comando
O primeiro desse fatores é a manutenção, nos aparelhos de repressão do país, da mesma mentalidade autoritária, dos mesmos métodos brutais e mesmo de muitos oficiais que fizeram parte do terror de Estado durante o regime militar. O Grupo Tortura Nunca Mais vem denunciando esses casos de torturadores que ocupam cargos de direção dos órgãos de segurança pública.
Um desses casos é o do o atual Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, coronel Josias Quintal, ex-analista de informações do DOI-CODI/RJ. Outro exemplo é o do tenente-coronel da PM, Paulo César Amêndola, também torturador durante a ditadura militar, e que foi nomeado para o comando da unidade anti-terrorismo. Nos dois casos, apesar das denúncias, os militares permanecem em seus postos.
A mentalidade do Exército também parece não ter se alterado muito. Os recentes documentos secretos descobertos em Marabá, sul do Pará, demonstram isso, ao apontarem que o Exército ainda hoje monitora os membros da população local envolvidos de alguma forma na operação que aniquilou a Guerrilha do Araguaia nos anos 70, e que os militares consideram, atualmente, o Movimento dos Sem Terra um inimigo interno a ser vigiado e combatido.
Escritório da CIA no Brasil
Um outro fator a ser apontado é a notícia da instalação de um escritório oficial da CIA no país. É a globalização da política de segurança norte-americana, que quer se fortalecer como a “Polícia do mundo”. E os atentados a Nova York e Washington em 11 de setembro acabaram se transformando em um grande pretexto para o avanço dessa política imperialista norte-americana.
E note-se que isso tudo acontece justamente no período em que começavam a se levantar com força as mobilizações contra a globalização proposta pelo capital. Em resposta a Gênova, Seatle, Porto Alegre e tantos outros momentos, o imperialismo norte-americano acena com a ameaça de intensificação do terror de Estado em todas as partes do mundo.
É sobre esses temas que nos fala, na entrevista a seguir, a presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, Elizabeth Silveira e Silva.
Entrevista com Elizabeth Silveira, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais
"Os EUA usam essa desculpa de combate ao terrorismo para fazer o terrorismo de Estado"
RNB — Como você vê essa dita "descoberta" – na verdade todos já sabiam – de que a CIA operava no Brasil na época da ditadura, dando suporte técnico e participando diretamente da repressão? Como era esse trabalho da CIA?
Elizabeth Silveira: Era um trabalho todo clandestino, que não aparecia. Mas a gente tinha conhecimento através de depoimentos de presos, que foram torturados e denunciaram a presença de estrangeiros na tortura. E tudo indicava que eram agentes da CIA. E a abertura de todos esses arquivos – como o da Operação Condor – comprova a atuação desses agentes em toda a América Latina. Então, a presença da CIA no país, através desse escritório que querem abrir agora em São Paulo, não é nenhuma novidade.
RNB — E em que momento da ditadura a CIA vem para o Brasil?
Elizabeth Silveira: Pelo que sabemos, ela vem antes da instalação da ditadura. Vem justamente para preparar e fomentar essa ditadura. Eles articularam os golpes e mantiveram essas ditaduras na América Latina, fazendo um terrorismo de Estado absurdo, na medida em que acabaram as liberdades, caçaram-se os direitos políticos, foi instaurada a censura e ocorreram as prisões arbitrárias e clandestinas, as torturas e os assassinatos de militantes da esquerda.
RNB — E a CIA operava tanto na área da inteligência quanto da repressão direta e da tortura?
Elizabeth Silveira: Justamente. Pelos depoimentos que a gente tem e por alguns arquivos que foram abertos, nós temos o conhecimento de que eles estavam aqui fazendo treinamento de torturador. Eles tinham uma participação ativa nessa tortura, na medida em que trabalhavam na formação desses torturadores. E patrocinaram uma ditadura violentíssima. Fala-se de uma suposta "suavidade" da ditadura instaurada no país, em comparação com aquelas ocorridas nos demais países da América Latina, por causa do menor número de mortes ocorridas aqui. Acontece que, em primeiro lugar, não se pode querer relativizar a violência de uma ditadura. Ela é sempre violenta, na medida em que censura, acaba com a liberdade, prende arbitrariamente, tortura e mata. Depois, deve ser lembrado que há no país um número gigantesco de desaparecidos, que não entram na conta dos mortos oficiais. Isso é um grande drama deixado pela ditadura. Imagine o que é para uma família ter alguém desaparecido, sem saber até hoje o paradeiro daquela pessoa.
RNB — E quais os reflexos da ditadura que sofremos ainda hoje em nossa sociedade?
Elizabeth Silveira: Isso a gente viu bem recentemente, quando abriram aqueles arquivos que tinham documentos do exército lá de Marabá. Foi descoberto que ainda hoje o Exército monitora aquela região. E as pessoas ainda têm muito medo de falar sobre a Guerrilha do Araguaia. Elas não se dispõe ainda a dar depoimentos, porque ainda se sentem inteiramente ameaçadas. E o exército faz esse monitoramento, dizendo que presta serviço à população carente. É a desculpa que ele dá para manter o controle da região e das pessoas, principalmente aquelas que serviram de guia para as tropas, ou colaboraram de alguma forma com a repressão.
RNB — Pode-se dizer que a mentalidade dos órgãos de informação e repressão no país tenha mudado muito dos tempos da ditadura para hoje?
Elizabeth Silveira: Não mudou. Primeiro porque a Abin, que antes era o SNI, mudou apenas de nome, mas manteve nos seus quadros as mesmas pessoas que atuaram na repressão durante a época da ditadura. Não houve mudança qualitativa nesse sentido. Há inclusive a denúncia de que há torturadores entre esses quadros, e o governo nunca liberou a lista da Abin para a gente poder averiguar essas denúncias. Então, essa estrutura continua atuando da mesma forma com que atuava na época da ditadura. E isso a gente pode ver nos documentos que foram liberados pelo exército e apreendidos pela Advocacia Geral da União. Está lá escrito quem, para eles, são as atuais forças adversas, que perigo elas oferecem... e que por isso seria válido desrespeitar os direitos humanos. Nas delegacias, continua se torturando da mesma forma que se torturava anteriormente. Agora mesmo, saiu no Jornal do Brasil a reportagem com a presença ainda do inspetor de polícia José Maria de Paula na delegacia de furtos e roubos de Belo Horizonte. Ele é um torturador, cujo nome é denunciado no projeto "Brasil Nunca Mais". E ele nunca saiu de lá. Ele está lá o tempo inteiro e continua fazendo as mesmas atrocidades que fazia no passado, apesar de todas as denúncias. Então, se você mantém as mesmas pessoas nos órgãos de repressão... Essas pessoas, minimamente, teriam que estar fora do serviço público. É inadmissível que a gente contribua financeiramente para pagar o salário dessas pessoas. Aqui no Rio de Janeiro, nós temos um secretário de segurança, o coronel Josias Quintal, que confessou aos meios de comunicação que fazia parte dos órgãos de repressão como analista de informação do DOI-CODI. E ele está aí, mantido no cargo, apesar de todas as denúncias já feitas. Agora, nessa unidade anti-terrorismo que foi criada com o pretexto dos atentados nos Estados Unidos, foi nomeado como comandante o tenente coronel Paulo César Amêndola, que também é denunciado como torturador no projeto Brasil Nunca Mais.
RNB — Como a nova conjuntura internacional agrava esse quadro, já que a mentalidade dos órgãos de inteligência e repressão não mudaram desde a época da ditadura?
Elizabeth Silveira: Isso tudo está dentro desse contexto. Primeiro, com essa política belicista e imperialista dos Estados Unidos. Essa vontade imensa que eles têm de se intrometer e de dominar. Então, eles usam essa desculpa de combate ao terrorismo para fazer o terrorismo de Estado. Eles são quem melhor tem esse tipo de atuação. Eles se acham no direito de se intrometer nas questões internas dos países, determinando que políticas de segurança eles vão adotar. Isso, na verdade, é uma política de segurança globalizada. E o que nós tememos é que eles passem a utilizar essa política de segurança para combater os movimentos sociais organizados, como sempre fizeram. Por que, no fundo, quem eles de fato identificam como inimigos? São aqueles que estão se organizando para criar uma nova ordem político-social, mais justa e anti-imperialista. E esse movimento anti-globalização vem crescendo muito no último período, já que a globalização imposta pelo capital não atendeu às necessidades da população mundial. E os Estados Unidos querem poder controlar esse movimento que surge. E a nova política globalizada de segurança que eles querem impor com o pretexto de responder aos terrorismo vem muito nesse sentido. A militarização aqui na América Latina, simbolizada principalmente pelo Plano Colômbia, tende a ser agravada.
RNB — Nesse contexto, qual o papel de grupos como o Tortura Nunca Mais, tanto no que diz respeito ao resgate histórico dos crimes cometidos, quanto no que tange o alerta para os riscos que se colocam com a nova conjuntura?
Elizabeth Silveira: A gente, quando continua denunciando os crimes do passado, é na visão de que, como esses crimes não foram esclarecidos, e como as estruturas do autoritarismo permanecem, as práticas de atrocidade se perpetuam. Então, o papel de um grupo como o Tortura Nunca Mais é denunciar as violações dos direitos humanos hoje, mas não esquecer que elas são frutos de toda uma política da impunidade que vem desde a época da ditadura. Nenhum torturador foi julgado pelos seus crimes. Foram todos anistiados, sem que se saiba nem quem são, nem que crimes eles cometeram. E estão aí até hoje, nas delegacias, nos órgãos de segurança, ocupando cargos de direção. Então, temos que continuar denunciando. E agora, mais do que nunca, dentro dessa nova ordem internacional que tenta legitimar as arbitrariedades e as violações de direitos humanos em nome de um suposto combate ao terror, e em que os Estados Unidos tentam reestruturar seu domínio mundial combatendo os movimentos que se organizam e começam a crescer no combate à ordem vigente, temos que estar atentos.
Apelo urgente
Acompanhando a perversa e perigosa conjuntura que vem sendo produzida a nível internacional, o atual Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, coronel Josias Quintal, ex-analista de informações do DOI-CODI/RJ, apressou-se em criar uma unidade anti-terrorismo em nosso Estado. Importante esclarecer que sob sua gestão, a segurança pública vem sendo gradativamente militarizada. Esta unidade anti-terrorismo ficará sob o comando do também ex-membro do aparato de repressão da ditadura militar, o tenente-coronel da PM, Paulo César Amêndola, cujo nome consta no Projeto Brasil Nunca Mais, coordenado pela Arquidiocese de São Paulo. Este senhor foi o coordenador da Guarda Municipal da cidade do Rio de Janeiro, militarizando-a e colocando-a para desempenhar funções que fugiam aos seus preceitos legais. Ou seja, sob seu comando a Guarda Municipal foi colocada para reprimir trabalhadores e movimentos sociais em nossa cidade.
A unidade anti-terrorismo, que funcionará na Secretaria de Segurança Pública, agregada à Coordenação Geral de Controle de Contingências, foi criada com a intenção de identificar grupos, conhecer sua composição, sua ideologia, modo de agir e sua área de atuação.
Recentemente, com a descoberta de documentos sigilosos do Serviço de Informações do Exército, tivemos a oportunidade de descobrir a quem os serviços de informações no Brasil consideram como “forças adversas”: os movimentos populares e as organizações sociais, em especial o MST.
Certamente, essa unidade anti-terrorismo, chefiada por dois membros do aparato de repressão da ditadura militar de 1964, comunga dessas mesmas idéias.
O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ repudia a unidade anti-terrorismo criada, com toda a certeza, para reprimir os movimentos sociais organizados, como a presença desses elementos do aparato repressivo ocupando cargos públicos, pagos com o dinheiro do contribuinte.
Entendemos que tais pessoas deveriam, no mínimo, ser afastados de suas funções públicas e não continuar atuando como se estivessem em pleno terrorismo de Estado.
Grupo Tortura Nunca Mais
Fonte: ADIA – Portal Popular