"O fim do Direito é a paz; o meio de atingi-lo, a luta. O Direito não é uma simples idéia, é força viva. Por isso a justiça sustenta, em uma das mãos, a balança, com que pesa o Direito, enquanto na outra segura a espada, por meio da qual se defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a impotência do Direito. Uma completa a outra. O verdadeiro Estado de Direito só pode existir quando a justiça bradir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança."

-- Rudolf Von Ihering

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quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

COR PADRÃO: Do livro Escravos Sociais e os Capitães do Mato - CHACINA DE VIGÁRIO GERAL

DISCRIMINAÇÃO RACIAL ...


(...)



“De que valem leis, onde falta nos homens o sentimento da justiça?” (Rio de Janeiro, DF – 
Obras Completas de Rui Barbosa. – V. 16, t. 5, 1889. p. 225 – Observações: Trecho do artigo “Faculdades do Recife”. Não há original no Arquivo da FCRB). (RUI BARBOSA)




Na PMERJ dos anos 80, a discriminação era tão latente como já dito; e curiosamente pela percepção do PM cujo incursionavam nas favelas; bom ser dito, saltava aos olhos o grande número de pessoas de cor negras e nordestinas, era a realidade em que se vivia; o policial militar em serviço de patrulhamento diverso passou absurdamente a referir-se aos suspeitos de delitos cometidos cujos eram negros como de “cor padrão”, mais ou menos a comunicação era assim:



RP – “-MARÉ ZERO, 560 chamando”,
CENTRO DE COMUNICAÇÃO – “-prossiga 560”,
RP – “positivo maré, o meliante segundo a solicitante
é de “cor padrão”...”.



Esta forma indigna de se referir as pessoas de cor negra era tanto usada pelos que operavam o rádio da viatura policial, quantos pelos operadores do centro de comunicação; e só parou este tratamento quando o então coronel PM Cerqueira, passou a punir quem insistia nesta prática; o comandante da PMERJ era negro, mas também defensor ferrenho dos Direitos Humanos; mas era muito estranho quando vez ou outra em conversas internas com colegas policiais negros se brincava dizendo a eles, que eles também eram de “cor padrão”, estes diziam que: “– sou gente! E não sou bandido”; aquilo era dito por eles de forma tão natural, que o conceito era no sentido que “cor padrão” servia para designar marginais ou suspeitos de cor negra moradores de favelas, entretanto não se dava este tratamento a todos os cidadãos negros, mas pior, se fosse pobre e de cor negra, mas não fosse bandido, era chamado de “PAPA INDIA”, cujo na linguagem cotejada, significava “pé inchado”, designação dada a pessoas pobres e alcoólatras, pois neste caso pouco importava se negro ou de pele branca..." (pág 177 a 180 - Escravos Sociais e os Capitães do Mato Chacina de Vigário Geral / Chiado Editora - www.chiadoeditora.com)


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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

LIVRO: ESCRAVOS SOCIAIS E OS CAPITÃES DO MATO - CHACINA DE VIGÁRIO GERAL / Publicação em janeiro de 2015.

"... Is the first time that one of the accused Slaughter materialized in book (which is different from a mere interview) your version and analysis of the facts that led to his arrest, termination and, in the end, acquittal by the jury (read, society represented by seven people), contrasting them ... in other words, it is respect for freedom of expression and contradictory that motivates me to present the work of Sergio Borges Cerqueira ... courage in be exposed is easily found by reading the book. Courage I learned to admire and, I must assign, became fundamental for clarification, if not the very Slaughter, for identification of the perpetrators cowards that committed "(Judge of the TJRJ - José Muiños Piñeiro Filho)..


"... But, anyway, we are facing a fundamentally important book for understanding the contradictions, perspectives and slips of public security in Rio de Janeiro in the last 30 years. Borges is not ashamed to unravel a dark past that he lived as a police officer and as guilty of a crime he did not commit. We hope that this work may gain importance in the future we can discuss in more depth the police forces ... "(Journalist, researcher and professor at PUC-Rio Author." The black in the Military Police: color, crime and career in Rio de Janeiro "and" Mothers of Acari: a history of social leadership ").









A responsabilidade de separar o joio do trigo

Inicio esta apresentação registrando, desde logo, que embora não tenha subscrito, na condição de Promotor de Justiça, a denúncia[1] que imputou ao autor desta obra a participação na chacina de Vigário Geral, ocorrida em 1993, fui responsável direto por requerer a manutenção de sua prisão por cerca de dois anos.  Não é só. Discordo de muitas afirmações ou conclusões feitas pelo autor, bem como não adiro a algumas críticas ou adjetivações, notadamente a determinados profissionais que atuaram no caso ou em outros casos citados, seja na condição de militar ou de membro do Ministério Público.
                
Então, porque aceitei o encargo tão delicado e aparentemente constrangedor? A resposta poderá parecer simples e ao mesmo tempo estranha e merece, por isso mesmo, ser explicada.  Por primeiro, sempre me instigou a reação do autor ao que ele entendia como acusação e prisão infame e injusta, bradando de modo muito peculiar a sua inocência, em todos os momentos nos quais comparecia ao II Tribunal do Júri[2] para as audiências. Em segundo lugar, a Chacina de Vigário Geral já foi objeto de documentário[3]; programas de televisão[4]; inúmeras reportagens em todos os meios de comunicação etc., porém, é a primeira vez que um dos acusados da Chacina materializa em livro (o que é diferente de uma mera entrevista) a sua versão e análise dos fatos que culminaram com a sua prisão, denúncia e, ao final, absolvição pelos jurados (leia-se, a sociedade representada por sete pessoas), contrapondo-os.

Em outras palavras, é o respeito à liberdade de expressão e ao contraditório que me motiva a apresentar a obra de Sérgio Cerqueira Borges.

Na verdade, trata-se não apenas de uma crônica sobre uma tragédia bem real, nada fictícia, mais do que isto há na obra um interessante estudo apresentando o desenvolvimento histórico das Instituições estatais incumbidas da segurança pública; uma análise sociológica das consequências da fusão entre os Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, no ponto; o ingresso do autor na Polícia Militar fluminense em 1982, coincidindo temporalmente com a ruptura entre o regime governamental militarizado e o retorno do exílio de líderes políticos a exemplo de Leonel Brizola; a estrutura da carreira policial, seus vícios e a necessidade, segundo o autor, de uma unificação institucional; a história da Chacina, suas razões, as verdades e distorções na apuração dos fatos, culminando com um libelo a respeito da prisão cautelar como prevista no ordenamento jurídico brasileiro, a propiciar injustiças tais quais – ainda o autor – a que foi ele vitimado e suportou entre setembro de 1993 e novembro de 1995.

A Chacina, portanto, é pano de fundo ou subtítulo para a obra intitulada ESCRAVOS SOCIAIS E OS CAPITÃES DO MATO.  O relato de Borjão – como costumava ser identificado durante a tramitação do processo, principalmente para distingui-lo de outro réu com idêntico sobrenome: Paulo Roberto Borges da Silva, o “BORGINHO” – se traduz em verdadeira catarse de quem ingressou no serviço público na época em que um “policial militar era respeitado, andava-se fardado com orgulho e prestigiado pela população” (pág.86).

A coragem em se expor é facilmente constatada com a leitura do livro.  Coragem que aprendi a admirar e, não posso deixar de consignar, se fez fundamental para o esclarecimento, se não da própria Chacina, para a identificação de parte dos covardes algozes que a cometeram.

Explico. A Chacina aconteceu no dia 29 de agosto de 1993, um domingo. No dia 22 de setembro do mesmo ano, seis Promotores de Justiça assinaram a denúncia em face de 33 pessoas, sendo 28 policiais militares, três policiais civis e dois informantes (X-9). Uma vez que os chacinadores estavam encapuzados, parecia evidente que vinte e cinco dias era tempo bastante insuficiente para investigar e identificar os autores dos 21 homicídios.

A ação penal foi distribuída ao II Tribunal do Júri onde Maurício Assayag e eu atuávamos como Promotores de Justiça e, coincidentemente, já estávamos à frente do processo relativo à Chacina da Candelária, ocorrida no dia 23 de julho do mesmo ano.  Não demorou muito para que nossas preocupações se confirmassem.  A principal testemunha dos fatos, o informante Ivan Custódio, mentiu sobre fato relevantíssimo, isto é, como, quando e em que condições ficou sabendo quem participou da chacina.  Alegara no primeiro depoimento em juízo que na manhã do dia seguinte, segunda-feira, ouviu, durante horas, na casa do policial militar José Fernandes Neto, o relato detalhado por este feito sobre os fatos, em especial o nome dos participantes.  Ocorre que ao ser interrogado em juízo referido policial negou a conversa, afirmando que naquela manhã estava de serviço em uma blitzen envolvendo três Batalhões e sob o comando conjunto de três capitães.

Esse “álibi” se fez confirmado oficialmente, obrigando à testemunha, para não ser processada por falso testemunho, a retificar o seu depoimento, retirando, ou ao menos reduzindo a sua idoneidade, comprometendo o resultado da ação penal.

Para ampliar a convicção de que a investigação realizada em tão pouco tempo apresentava falhas e tornava duvidosa a imputação promovida, a única sobrevivente que se disse em condições de reconhecer um dos autores da Chacina, justamente aquele que matara o seu irmão e tentou igualmente assassiná-la em uma das vielas do Parque Proletário de Vigário Geral, restou por não reconhecer qualquer dos acusados, porém reconhecendo um oficial da polícia militar convidado pela juíza a compor o rol de pessoas que, misturadas, seriam submetidas a reconhecimento[5].

Portanto, o processo relativo à Chacina de Vigário Geral caminhava a passos largos para uma impunidade geral ou na direção de uma grande e manifesta injustiça, levando à condenação, dada a repercussão do caso, de inocentes ou à absolvição de culpados.

Por isso, a coragem de Sérgio Cerqueira Borges e outro acusados em gravar conversas no ambiente carcerário, colocando em potencial risco suas vidas se afigurou fundamental para permitir, assim, uma profunda investigação dos fatos, justificando a frase que muitas vezes repeti em entrevista quando indagado sobre o que se apurou a partir da apresentação das fitas, por alguns réus, à saudosa juíza Maria Lúcia Capiberibe e que é reproduzida na página 151 deste livro e inspirou o título desta apresentação: A separação do joio do trigo.

Bem sabíamos que referidos ritos causariam muita polêmica. Havia um antecipado e discriminatório descrédito público pelo conteúdo de conversas mantidas por presos, máxime quando acusados da Chacina de Vigário Geral. Entretanto, submetida à perícia realizada pelo Prof. Ricardo Molina, do Instituto de Identificação de voz do Departamento Medicina Legal da Universidade de Campinas, com transcrição dos conteúdos, a confirmação positiva de vários confrontos vocálicos e, principalmente, a constatação da inexistência de manipulação, deram ensejo à instauração de um Inquérito Policial Militar, cujo encarregado Coronel Denisar Santos, com a minha participação, de Assayag e Marcos André Chut, promotor de justiça designado a nos auxiliar, logrou reunir diversas provas que, seguramente, habilitariam como de fato habilitaram a sustentar perante o Júri ao menos algumas condenações[6].

Em maio de 1997 subi à Tribuna do II Tribunal do Júri para realizar meu último julgamento como Promotor de Justiça, porquanto assumiria no mês seguinte o cargo de Procurador de Justiça[7].

Não por coincidência o réu, Paulo Roberto Alvarenga, era o primeiro dos 33 acusados da Chacina a ser submetido a julgamento.  Foram quatro dias de intensos debates, oitiva de testemunhas, análise de laudos periciais etc.  Ao final dos trabalhos o Presidente do Júri, juiz José Geraldo Antônio, anunciava o resultado da votação dos jurados: 6 (seis) votos pela condenação e 1 (um) voto pela absolvição.  Impôs, o juiz, ao réu, a pena de 449 anos de prisão.

A esta condenação seguiram-se outras seis.  Muitos acusados sequer foram julgados porque morreram no curso do processo devido à doença ou em razão de assassinato.

No caso do autor desta obra, não obstante outros dois valorosos Promotores de Justiça terem pugnado perante o júri pela condenação, os jurados, por maioria de votos (4x3), o absolveram, decisão que foi mantida pelos Desembargadores da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça.

Faz 21 anos que a Chacina aconteceu.  Até hoje mantenho contato pessoal com a comunidade do Parque Proletário de Vigário Geral, notadamente com sobreviventes e familiares das vítimas.  O Estado do Rio de Janeiro reconheceu, em 2000, a sua responsabilidade moral pela Chacina[8].

Infelizmente, outras Chacinas aconteceram posteriormente, manchando de sangue inocente a Cidade Maravilhosa, a exemplo do que ocorreu na baixada fluminense em 2005, onde 29 pessoas foram brutal e covardemente mortas.

A obra que por ora apresento, independentemente de concordar ou não com as afirmações e conclusões do autor, frise-se, é mais um documento que contribuirá para manter a lembrança daquela tragédia, na expectativa de que assim, quem sabe, um dia, a Cidade Partida volte a ser uma só.

JOSÉ MUIÑOS PIÑEIRO FILHO  - DESEMBARGADOR DO TJRJ.





[1] Peça formal que dá início a uma ação penal.
[2] No foro central da Cidade do Rio de Janeiro Capital existem quatro tribunais do júri e o feito foi distribuído ao II Tribunal do Júri, por sorteio.
[3] LEMBRAR PARA NÃO ESQUECER (2012), de Milton Alencar.
[4] A exemplo do programa Linha Direta, da TV Globo (2005).
[5] Trata-se de Jussara Prazeres da Costa, irmã da vítima Edmilson José Prazeres da Costa, assassinado na ...... O oficial “reconhecido” pela testemunha/vítima era o responsável pela escolta de Ivan Custódio.
[6] Com efeito, dentre outras provas, logrou-se que dois policiais que sustentavam o álibi do réu Sirley Alves Teixeira retificassem os seus depoimentos afirmando que aquele acusado não se fez presente na Cabine localizada na Praça Seca para a qual estaria escalado; a confirmação pericial de que houve adulteração criminosa do Livro do Armeiro do 9º BPM; a comprovação de que os carros utilizados pelos chacinadores permaneceram estacionados em um posto de gasolina frontal à passarela que permite chegar ao Parque Proletário de Vigário Geral; a existência de reunião de diversos chacinadores momentos antes da Chacina, no PPC de Fazenda Botafogo; o depoimento de uma das crianças que sobreviveu à Chacina na casa da família de evangélicos (hoje nominada de Casa da Paz), esclarecendo que foi um dos “chacinadores” quem impediu que fossem mortos e o ajudou a pular uma laje e se abrigar na casa vizinha.
[7] O cargo de Procurador de Justiça é o último possível de ser atingido na carreira do Ministério Público.
[8] O Projeto de Lei nº 1588/2000 redigido por Assayag, Chut e por mim e encaminhado à Assembleia Legislativa pelo Governador Anthony Garotinho, foi aprovado por unanimidade e transformado na Lei nº 3421, de 16 de junho de 2000, tendo por ementa: “DISPÕE SOBRE A CONCESSÃO DE PENSÃO À VÍTIMA SOBREVIVENTE DA CHACINA DA CANDELÁRIA, AS VÍTIMAS SOBREVIVENTES E AOS DEPENDENTES DAS VÍTIMAS FATAIS DA CHACINA DE VIGÁRIO GERAL, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.”






UMA POLÍCIA MILITAR PARTIDA?
POR CARLOS NOBRE*

As duas palavras do título dessa obra –  “escravos  sociais” -  seria porque, apesar de estarem numa sociedade capitalista, os policiais militares  trabalham igual à escravidão. Essa analogia foi feita pelo o ex- soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PM), Sergio Cerqueira Borges, hoje advogado, em seu livro, intitulado “Escravos Sociais. Os capitães do mato (Chacina de Vigário Geral. Livro I)”.

Nesta obra, Borges, como era chamado pelos antigos colegas de profissão, mostra, na primeira parte dela, como era a atuação dos policiais militares durante o primeiro governo estadual de Leonel Brizola (1983-1986). Brizola, líder populista clássico, se elegera governador com os votos da camadas negras da periferia e Baixada Fluminense, após  anistiado e retornado do exílio imposto pelo regime militar(1964-1985). Era, no Rio de Janeiro, o primeiro governo eleito democraticamente desde 1964 e trazia muitas esperanças para os servidores e a população fluminense.

Em seguida,  o autor desta obra se dedica a esmiuçar a Chacina de Vigário Geral ( 21 mortos, em agosto de 1993, no Rio de Janeiro), quando, na época, se transformara num dos 33 PMs acusados de cometerem o crime bárbaro que chocou o mundo e o Brasil, onde, crianças, mulheres e favelados, dormindo, foram mortos a tiros por policiais militares, na madrugada.

Após mostrar que diversos assassinos dos favelados estavam à solta, Borges fez uma investigação pessoal- afinal, ele era um policial da área de inteligência, das chamadas “P-2” dos batalhões- e, por isso, foi inocentado, após ficar quatro anos preso. Para tal procedimento, ele gravou conversas na prisão com alguns acusados que revelaram nomes de outros policiais que estavam nas ruas. Isso provocou a reviravolta do caso, pois, o então promotor de justiça do caso, José Muiños Piñero – hoje desembargador do Tribunal de Justiça – pode acrescentar novos acusados e mudar os rumos do processo, de acordo com Borges.

Em relação aos “escravos sociais”, ele quer se referir ao período no qual como policial em diversas unidades da corporação, principalmente nos anos 1980, pode observar não apenas um desvio de conduta nos batalhões, mas, uma situação político-criminal, onde o policial menos graduado, trabalhava como “escravo” e era obrigado pelo modo de produção de combate à criminalidade da  época a ser um criminoso em potencial.

Por outra perspectiva, Borges ao falar da crise da instituição militar, a qual pertencia, também mostra que os “escravos sociais” já nasciam com o selo da burocracia do poder público, ao revelar que a fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro, em 1975, fez com que os  oriundos das duas PMs tivessem  tratamento diferenciados perante o novo estado fluminense. Ou seja, os policiais oriundos do interior parecem ter ganho mais primazia na distribuição salarial.   

Assim, se instalou a divergência na tropa e os constantes movimentos de reparação salarial nos quartéis. Borges, aqui, não avança muito, não estabelece claramente como foi esta crise histórica de status nas corporações, mas mesmo assim, mostra que houve desigualdades entre soldados do antigo estado da Guanabara e aquele do interior.

Mas retornando aos  “escravos sociais”:  Borges, em sua obra, revela que, nos anos 1980, era comum nos batalhões terem oficiais e soldados corruptos. O fato começava pelo sargento que ganhava propina do soldado para pô-lo em trabalhos menos arriscados e mais controlados, segundo Borges. Quem discordasse, ia fazer PO (policiamento ostensivo) nas áreas mais críticas, correndo o risco de ser morto.

Outro fato fundamental para se entender o trabalho policial em qualquer conjuntura histórica:  Borges fala da cultura do “arrego” na PM fluminense. “Arrego” é quando a equipe policial de uma determinada região ou batalhão para não atuar nos domínios dos bandidos ou traficantes recebe em troca uma compensação financeira. Assim, o bandido fica livre da ação policial e passa a atuar livremente.

Existem casos de “arrego” que mostram como esta cultura invertida pode provocar naqueles mais vulneráveis. Segundo Borges, no final dos anos 1980, na Favela do Borel, da Tijuca, o “arrego” entre os policiais do 6º.Batalhão de Polícia Militar, do Andaraí,  e os traficantes, fez com que estes dessem tiros nas mãos dos jovens ladrões da comunidade, para que não roubassem mais naquela região.  Ou seja, havia queixas da classe média contra esses roubos no batalhão, e os policiais acionaram os traficantes para que impedissem tais crimes, já que estavam “arregados” com os marginais.

Além do “arrego”, havia a relação promíscua com os comerciantes de determinada região, que eram achacados pelos policiais para pagarem certa quantia por mês a fim de que as patrulhas mantivessem presença naquele bairro ou região, segundo Borges.

Ou seja, os policiais investiam na insegurança pública para oferecer serviços de “segurança” aos cidadãos. Aqui, Borges, não perdoa ninguém, revelando que muitos comandantes dos batalhões estavam no esquema de exploração dos comerciantes e muitos deles “arregados” ao narcotráfico. Assim, segundo ele, havia duas PMs, aquela vista nas ruas, em suas viaturas e cabines, e aquela, mais ou menos oculta, onde a segurança pública era o comércio da insegurança rateado entre todos que dele faziam parte. Ou seja,  esta “insegurança” provocada enriquecia com corrupção alta muitos praças e oficiais, segundo o autor da obra.

Assim, havia uma situação perversa dos dois lados.

Os comerciantes, por seu turno, já pagavam alto pelo serviço através de impostos, mas não se importavam de pagar pela segunda vez, neste caso,  com a pressão psicológica mantida pelos policiais corruptos que ameaçavam retirar radiopatrulhas dos bairros caso não recebem “extras” por aquele serviço, já previamente pago pelos impostos. Em outras palavras: esse achacado não tinha dúvidas em pagar duas vezes, pois, sabia de antemão, que não adiantava se queixar, pois, a polícia trabalha assim e até seus chefes mais altos faziam vistas grossas aos esquemas, segundo Borges.

Outra observação sociologicamente interessante é quando Borges detalha a visão que os governadores, a cada quatro anos, têm de sua força policial. Segundo ele, em geral, os oficiais que comandam a PM, honestos ou corruptos, são tratados da mesma forma pelos governadores. Em outras palavras: permanecem nos cargos desde que não atrapalhem os interesses dos poderosos. Ou seja, se manteriam nos cargos, se não provocassem opiniões desagradáveis da população sobre o seu governo na questão da segurança pública. Isto porque historicamente a segurança pública é um tema que os eleitores de todas as classes consideram prioritário em qualquer eleição. Tanto é assim que policiais civis ou militares têm sido eleitos para vereadores prometendo acabar com violência, quando, legalmente, não tem condições para tal, já que são parlamentares municipais e não estaduais.

Nesse sentido, segundo Borges, os comandantes da PM não podem ameaçar a carreira política do governador nesta área supersensível. Suas gestões à frente das corporações  devem   atender aos beneplácitos da estratégia estatal de combate à criminalidade e nunca pensar algo tecnicamente perfeito em termos policiamento. Daí, então, em muitos casos, o silêncio angustiado dos comandantes das duas polícias (civil e militar) diante da crise de segurança que se abate sobre o estado, pois, não podem botar pé nisso além da faixa demarcada. Em certo sentido, o filme “Tropa de Elite II” mostrou um pouco desse métier, onde, o governador do filme, envolvido pela milícia, faz com que sua polícia corrupta aja como um belo ator para um espetáculo midiático.

Desse modo,  surge questões antropológicas e sociais nesse drama de altíssimo poder de explosão política. Ou seja, existem “ritos de passagem” nisso tudo. Como os chefes de Polícia (civil e militar), eles não querem ser demitidos, perderem o poder, então, fazem uma gestão contrária às normas mais clássicas de segurança pública, e acabam assim, criando crises e mais crises nas instituições que dirigem, pois, ninguém domina “máscaras”, “fingimento”, “ o faz de conta” eternamente. Estas “máscaras” não têm limite, código de ética,  pelo contrário, são incontroláveis. E, nesta perspectiva, quem perde é a população, que desconhece esses acordos e modelos gerenciais da segurança pública, que visa, sobretudo, dar luxo e poder aos corruptos.

Nesso sentido, o cotidiano interno nos batalhões tendem a serem um festival de impunidade e descaso com coisa pública,  de acordo com o relato de Borges, nessa obra de suma importância. Existiam, na época, a transformação de carros policiais em carcaças. Estas eram revendidas em ferros-velhos, num esquema que dava dinheiro para os envolvidos, ou seja , os donos de ferros-velhos e policiais. Também havia o  impedimento para atuarem nos morros e favelas além de cabines policiais inúteis, segundo Borges, em suas passagens pelos batalhões da PM fluminense, a mais antiga do Brasil, criada, em 1809, pelo então príncipe Regente de Portugal, Dom João VI.

Ele, Borges, ao vivo, como testemunha ocular, como a segurança pública era sucateada de dentro, ou seja, esta segurança pública era uma ficção na percepção da população e algo tangível para seus mais diletos protagonistas, ou seja, aqueles encarregados de debelar os ataques aos cidadãos pelos criminosos.

Borges, por seu turno, crítico do governo Leonel Brizola, nos anos 1980, diz que, havia bastante omissão na tropa, naquele momento. Em primeiro lugar, ao impedir que os PMs entrassem nos morros e favelas do estado, o governo compactuava com o crime do narcotráfico presente nestas comunidades. Em vista disso, segundo ele, os traficantes de  cocaína  a  exploravam com nome o nome de  “Brizola”. 

Segundo o ex-militar, naquela ocasião, os bandidos ficaram ousados e desafiavam  abertamente os policiais com essa política de não subida aos morros e favelas. Às vezes, escreve ele, alguns soldados ligavam para o telefone 190, da PM, dizendo que havia policiais feridos nos morros. Era um trote para que  a instituição autorizasse a subida e socorro ao policial ferido entre aspas no morro.

Em relação à Chacina de Vigário Geral, onde tornou-se réu, e depois inocente,  Borges deixa que seu ex-comandante, o coronel aposentado Emir Larangeira,  ex-deputado estadual nos anos 1990,  explique com detalhes qual foi a participação da instituição no extermínio dos favelados.

Assim, em seu livro, o ex-policial e hoje advogado coloca um ensaio de seu ex-comandante militar, do 9º.Batalhão de Polícia Militar, em Rocha Miranda, zona norte do Rio de Janeiro,  sobre a chacina que traumatizou o Brasil e o mundo. Larangeira, desse modo, no livro de Borges, centra fogo em duas personalidades deste caso traumático.

A primeira é personalidade é Walmir Alves Brum, ex- comandante da P-2 ( Serviço de Informações) do quartel-general da corporação, na segunda gestão Leonel Brizola( 1990-1993). Para Larangeira,  Brum, naquela época, homem de confiança do então Secretário de Justiça e Direitos Humanos, Nilo Batista, e do comandante da PM, coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira,  manipulou as investigações e colocou na lista de assassinos policiais militares que não tinham nada a ver com o massacre. Ele fez isso,  pois,  teria divergências com ele. Não à toa, os suspeitos arrolados por Brum teriam trabalhando com Larangeira, na época que fora comandante militar dos mesmos, segundo o ex-militar.

Larangeira, neste ensaio anexado ao livro do ex-subordinado,  também investiu contra a poderosa testemunha levantada por Brum, o X-9  ( informante policial) Ivan Custodio, que listou todos os participantes da chacina, em troca de proteção. Larangeira criticou o fato de Custódio ter sido  ouvido e protegido pela PM. Pelas regras legais, acentuou o ex-coronel da PM, deveria ter sido ouvido na Delegacia de Defesa da Vida (DDV), que investigava, naquela época, crimes homicídios,  e hoje extinta.

No entanto, a estratégia, talvez ilegal, visava sobretudo proteger uma testemunha importante, já que, naquela época, as autoridades de segurança pública do segundo governo estadual Leonel Brizola ( 1990-1993) não confiavam em determinados setores da Polícia Civil. Se entregue a esta força policial,  a testemunha-chave poderia sumir rapidamente, raciocinaram os investigadores da Chacina de Vigário Geral. Desse modo, todo o depoimento de Ivan Custódio ficou sob controle do Serviço de Informações do quartel-general da PM, onde predominava o coronel Brum como seu chefe-geral.

Com certeza, Borges e Larangeira podem estar certos, a respeito das investigações de Brum, pois, este teria colocado policiais inocentes como réus na chacina de Vigário Geral. Este jogo é comum nesta área, pois, os policiais são pressionados a apresentar suspeitos imediatamente diante de um crime de repercussão. Assim, quando são pressionados pelos poderes mais relevantes do estado, tendem a perder o controle da qualidade investigativa, e assim, incluir nomes que aparentemente teriam participado de atos criminosos.

Ao proteger a testemunha-chave de Vigário Geral, os dirigentes da segurança pública provocaram uma explosão dentro do aparelho policial. Ivan Custodio não deu somente os nomes dos participantes da chacina (coincidentemente ele era sócio criminoso de um dos quatro policiais militares assassinados dois antes da chacina, em Vigário geral, e que provocou a reação da força policial), mas revelou uma rede de policiais envolvidos com o tráfico de drogas, extorsão, extermínio, mineiras, entre outros crimes pesadíssimos. 

Mesmo com Larangeira tentando desqualificar um inimigo- o coronel Brum- , este, no entanto, era difícil de ser flagrado como corrupto. Sua qualidade investigativa a mídia respeitava.  Nos anos 1990, foi responsável pelo estouro de grandes quadrilhas policiais ligadas a crimes de todos os tipos no estado do Rio de Janeiro. Foi o policial que investigou e comandou o estouro da fortaleza do banqueiro de jogo de bicho Castor de Andrade, em 1993, que provocou a maior investigação do Ministério Público nesta área. A investigação encontrou as  chamadas “listas de propinas” do jogo do bicho, onde, ali, estavam listado nomes de altas autoridades, até do próprio Nilo Batista, e de vários artistas, advogados, jornalistas, policiais, atletas, deputados, vereadores. Ou seja, a rede do crime organizado no Rio de Janeiro, realmente,  era extensa.

Por fim, Borges, apesar de crítico contundente da gestão Leonel Brizola no governo do estado do Rio de janeiro, a partir de 1983, não tem pudor em dizer que o coronel negro Carlos Magno Nazareth Cerqueira, foi um grande comandante da tropa. Ele, Borges, não afirma que Nazareth Cerqueira foi corrupto. Ao contrário, reafirma que era um homem integro.

Na verdade, Borges, aqui, não detalhou a biografia de um ícone da PM fluminense.  Nazareth Cerqueira foi o grande policial do Brasil dos últimos 40 anos. Ele modernizou completamente a Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi o introdutor da prática dos direitos humanos na abordagem policial, mostrou que a PM se baseava no racismo ao atuar nas ruas, criou diversas unidades que fizeram história na tropa como o Proerd(Programa Educacional de Resistencia às Drogas), aplicado em escolas públicas e privadas do Rio de Janeiro e depois difundido em todo país.

Mas, de qualquer modo, estamos diante de um livro fundamentalmente importante para se compreender as contradições, perspectivas e deslizes da segurança pública no Rio de Janeiro nos últimos 30 anos. Borges não tem pudor em desvendar um passado sombrio que ele viveu como policial e também como réu de um crime que não cometeu. Esperamos que esta obra possa ganhar importância para futuramente possamos discutir com mais profundidade as corporações policiais.


*Jornalista, pesquisador e professor da PUC-Rio. Autor de “ O negro na Polícia Militar: cor, crime e carreira no Rio de Janeiro” e “ Mães de Acari: uma história de  protagonismo social”.