UMA POLÍCIA MILITAR PARTIDA?
POR CARLOS NOBRE*
As duas palavras do título dessa obra – “escravos
sociais” - seria porque, apesar
de estarem numa sociedade capitalista, os policiais militares trabalham igual à escravidão. Essa analogia
foi feita pelo o ex- soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PM), Sergio
Cerqueira Borges, hoje advogado, em seu livro, intitulado “Escravos Sociais. Os capitães do mato (Chacina de Vigário Geral. Livro
I)”.
Nesta obra, Borges, como era chamado pelos antigos colegas de
profissão, mostra, na primeira parte dela, como era a atuação dos policiais
militares durante o primeiro governo estadual de Leonel Brizola (1983-1986).
Brizola, líder populista clássico, se elegera governador com os votos da
camadas negras da periferia e Baixada Fluminense, após anistiado e retornado do exílio imposto pelo
regime militar(1964-1985). Era, no Rio de Janeiro, o primeiro governo eleito
democraticamente desde 1964 e trazia muitas esperanças para os servidores e a população
fluminense.
Em seguida, o autor
desta obra se dedica a esmiuçar a Chacina de Vigário Geral ( 21 mortos, em
agosto de 1993, no Rio de Janeiro), quando, na época, se transformara num dos
33 PMs acusados de cometerem o crime bárbaro que chocou o mundo e o Brasil,
onde, crianças, mulheres e favelados, dormindo, foram mortos a tiros por
policiais militares, na madrugada.
Após mostrar que diversos assassinos dos favelados estavam à
solta, Borges fez uma investigação pessoal- afinal, ele era um policial da área
de inteligência, das chamadas “P-2” dos batalhões- e, por isso, foi inocentado,
após ficar quatro anos preso. Para tal procedimento, ele gravou conversas na
prisão com alguns acusados que revelaram nomes de outros policiais que estavam
nas ruas. Isso provocou a reviravolta do caso, pois, o então promotor de
justiça do caso, José Muiños Piñero – hoje desembargador do Tribunal de Justiça
– pode acrescentar novos acusados e mudar os rumos do processo, de acordo com
Borges.
Em relação aos “escravos sociais”, ele quer se referir ao período
no qual como policial em diversas unidades da corporação, principalmente nos
anos 1980, pode observar não apenas um desvio de conduta nos batalhões, mas,
uma situação político-criminal, onde o policial menos graduado, trabalhava como
“escravo” e era obrigado pelo modo de produção de combate à criminalidade
da época a ser um criminoso em
potencial.
Por outra perspectiva, Borges ao falar da crise da
instituição militar, a qual pertencia, também mostra que os “escravos sociais”
já nasciam com o selo da burocracia do poder público, ao revelar que a fusão
dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro, em 1975, fez com que os oriundos das duas PMs tivessem tratamento diferenciados perante o novo estado
fluminense. Ou seja, os policiais oriundos do interior parecem ter ganho mais
primazia na distribuição salarial.
Assim, se instalou a divergência na tropa e os constantes
movimentos de reparação salarial nos quartéis. Borges, aqui, não avança muito,
não estabelece claramente como foi esta crise histórica de status nas
corporações, mas mesmo assim, mostra que houve desigualdades entre soldados do
antigo estado da Guanabara e aquele do interior.
Mas retornando aos “escravos sociais”: Borges, em sua obra, revela que, nos anos
1980, era comum nos batalhões terem oficiais e soldados corruptos. O fato
começava pelo sargento que ganhava propina do soldado para pô-lo em trabalhos
menos arriscados e mais controlados, segundo Borges. Quem discordasse, ia fazer
PO (policiamento ostensivo) nas áreas mais críticas, correndo o risco de ser
morto.
Outro fato fundamental para se entender o trabalho policial
em qualquer conjuntura histórica: Borges
fala da cultura do “arrego” na PM fluminense. “Arrego” é quando a equipe
policial de uma determinada região ou batalhão para não atuar nos domínios dos
bandidos ou traficantes recebe em troca uma compensação financeira. Assim, o
bandido fica livre da ação policial e passa a atuar livremente.
Existem casos de “arrego” que mostram como esta cultura
invertida pode provocar naqueles mais vulneráveis. Segundo Borges, no final dos
anos 1980, na Favela do Borel, da Tijuca, o “arrego” entre os policiais do 6º.Batalhão
de Polícia Militar, do Andaraí, e os
traficantes, fez com que estes dessem tiros nas mãos dos jovens ladrões da
comunidade, para que não roubassem mais naquela região. Ou seja, havia queixas da classe média contra
esses roubos no batalhão, e os policiais acionaram os traficantes para que
impedissem tais crimes, já que estavam “arregados” com os marginais.
Além do “arrego”, havia a relação promíscua com os
comerciantes de determinada região, que eram achacados pelos policiais para
pagarem certa quantia por mês a fim de que as patrulhas mantivessem presença
naquele bairro ou região, segundo Borges.
Ou seja, os policiais investiam na insegurança pública para
oferecer serviços de “segurança” aos cidadãos. Aqui, Borges, não perdoa
ninguém, revelando que muitos comandantes dos batalhões estavam no esquema de
exploração dos comerciantes e muitos deles “arregados” ao narcotráfico. Assim,
segundo ele, havia duas PMs, aquela vista nas ruas, em suas viaturas e cabines,
e aquela, mais ou menos oculta, onde a segurança pública era o comércio da
insegurança rateado entre todos que dele faziam parte. Ou seja, esta “insegurança” provocada enriquecia com
corrupção alta muitos praças e oficiais, segundo o autor da obra.
Assim, havia uma situação perversa dos dois lados.
Os comerciantes, por seu turno, já pagavam alto pelo serviço
através de impostos, mas não se importavam de pagar pela segunda vez, neste
caso, com a pressão psicológica mantida
pelos policiais corruptos que ameaçavam retirar radiopatrulhas dos bairros caso
não recebem “extras” por aquele serviço, já previamente pago pelos impostos. Em
outras palavras: esse achacado não tinha dúvidas em pagar duas vezes, pois,
sabia de antemão, que não adiantava se queixar, pois, a polícia trabalha assim
e até seus chefes mais altos faziam vistas grossas aos esquemas, segundo
Borges.
Outra observação sociologicamente interessante é quando
Borges detalha a visão que os governadores, a cada quatro anos, têm de sua
força policial. Segundo ele, em geral, os oficiais que comandam a PM, honestos
ou corruptos, são tratados da mesma forma pelos governadores. Em outras palavras:
permanecem nos cargos desde que não atrapalhem os interesses dos poderosos. Ou
seja, se manteriam nos cargos, se não provocassem opiniões desagradáveis da
população sobre o seu governo na questão da segurança pública. Isto porque
historicamente a segurança pública é um tema que os eleitores de todas as
classes consideram prioritário em qualquer eleição. Tanto é assim que policiais
civis ou militares têm sido eleitos para vereadores prometendo acabar com
violência, quando, legalmente, não tem condições para tal, já que são
parlamentares municipais e não estaduais.
Nesse sentido, segundo Borges, os comandantes da PM não podem
ameaçar a carreira política do governador nesta área supersensível. Suas
gestões à frente das corporações
devem atender aos beneplácitos
da estratégia estatal de combate à criminalidade e nunca pensar algo
tecnicamente perfeito em termos policiamento. Daí, então, em muitos casos, o
silêncio angustiado dos comandantes das duas polícias (civil e militar) diante
da crise de segurança que se abate sobre o estado, pois, não podem botar pé
nisso além da faixa demarcada. Em certo sentido, o filme “Tropa de Elite II”
mostrou um pouco desse métier, onde, o governador do filme, envolvido pela
milícia, faz com que sua polícia corrupta aja como um belo ator para um
espetáculo midiático.
Desse modo, surge
questões antropológicas e sociais nesse drama de altíssimo poder de explosão
política. Ou seja, existem “ritos de passagem” nisso tudo. Como os chefes de
Polícia (civil e militar), eles não querem ser demitidos, perderem o poder,
então, fazem uma gestão contrária às normas mais clássicas de segurança
pública, e acabam assim, criando crises e mais crises nas instituições que
dirigem, pois, ninguém domina “máscaras”, “fingimento”, “ o faz de conta”
eternamente. Estas “máscaras” não têm limite, código de ética, pelo contrário, são incontroláveis. E, nesta
perspectiva, quem perde é a população, que desconhece esses acordos e modelos
gerenciais da segurança pública, que visa, sobretudo, dar luxo e poder aos
corruptos.
Nesso sentido, o cotidiano interno nos batalhões tendem a
serem um festival de impunidade e descaso com coisa pública, de acordo com o relato de Borges, nessa obra
de suma importância. Existiam, na época, a transformação de carros policiais em
carcaças. Estas eram revendidas em ferros-velhos, num esquema que dava dinheiro
para os envolvidos, ou seja , os donos de ferros-velhos e policiais. Também
havia o impedimento para atuarem nos
morros e favelas além de cabines policiais inúteis, segundo Borges, em suas
passagens pelos batalhões da PM fluminense, a mais antiga do Brasil, criada, em
1809, pelo então príncipe Regente de Portugal, Dom João VI.
Ele, Borges, ao vivo, como testemunha ocular, como a
segurança pública era sucateada de dentro, ou seja, esta segurança pública era
uma ficção na percepção da população e algo tangível para seus mais diletos protagonistas,
ou seja, aqueles encarregados de debelar os ataques aos cidadãos pelos
criminosos.
Borges, por seu turno, crítico do governo Leonel Brizola, nos
anos 1980, diz que, havia bastante omissão na tropa, naquele momento. Em primeiro
lugar, ao impedir que os PMs entrassem nos morros e favelas do estado, o
governo compactuava com o crime do narcotráfico presente nestas comunidades. Em
vista disso, segundo ele, os traficantes de cocaína a exploravam com nome o nome de “Brizola”.
Segundo o ex-militar, naquela ocasião, os bandidos ficaram ousados
e desafiavam abertamente os policiais
com essa política de não subida aos morros e favelas. Às vezes, escreve ele,
alguns soldados ligavam para o telefone 190, da PM, dizendo que havia policiais
feridos nos morros. Era um trote para que a instituição autorizasse a subida e socorro
ao policial ferido entre aspas no morro.
Em relação à Chacina de Vigário Geral, onde tornou-se réu, e
depois inocente, Borges deixa que seu
ex-comandante, o coronel aposentado Emir Larangeira, ex-deputado estadual nos anos 1990, explique com detalhes qual foi a participação
da instituição no extermínio dos favelados.
Assim, em seu livro, o ex-policial e hoje advogado coloca um
ensaio de seu ex-comandante militar, do 9º.Batalhão de Polícia Militar, em
Rocha Miranda, zona norte do Rio de Janeiro,
sobre a chacina que traumatizou o Brasil e o mundo. Larangeira, desse
modo, no livro de Borges, centra fogo em duas personalidades deste caso
traumático.
A primeira é personalidade é Walmir Alves Brum, ex- comandante
da P-2 ( Serviço de Informações) do quartel-general da corporação, na segunda
gestão Leonel Brizola( 1990-1993). Para Larangeira, Brum, naquela época, homem de confiança do
então Secretário de Justiça e Direitos Humanos, Nilo Batista, e do comandante da
PM, coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira,
manipulou as investigações e colocou na lista de assassinos policiais
militares que não tinham nada a ver com o massacre. Ele fez isso, pois, teria divergências com ele. Não à toa, os
suspeitos arrolados por Brum teriam trabalhando com Larangeira, na época que
fora comandante militar dos mesmos, segundo o ex-militar.
Larangeira, neste ensaio anexado ao livro do ex-subordinado, também investiu contra a poderosa testemunha
levantada por Brum, o X-9 ( informante
policial) Ivan Custodio, que listou todos os participantes da chacina, em troca
de proteção. Larangeira criticou o fato de Custódio ter sido ouvido e protegido pela PM. Pelas regras
legais, acentuou o ex-coronel da PM, deveria ter sido ouvido na Delegacia de Defesa
da Vida (DDV), que investigava, naquela época, crimes homicídios, e hoje extinta.
No entanto, a estratégia, talvez ilegal, visava sobretudo
proteger uma testemunha importante, já que, naquela época, as autoridades de
segurança pública do segundo governo estadual Leonel Brizola ( 1990-1993) não
confiavam em determinados setores da Polícia Civil. Se entregue a esta força
policial, a testemunha-chave poderia
sumir rapidamente, raciocinaram os investigadores da Chacina de Vigário Geral.
Desse modo, todo o depoimento de Ivan Custódio ficou sob controle do Serviço de
Informações do quartel-general da PM, onde predominava o coronel Brum como seu
chefe-geral.
Com certeza, Borges e Larangeira podem estar certos, a
respeito das investigações de Brum, pois, este teria colocado policiais
inocentes como réus na chacina de Vigário Geral. Este jogo é comum nesta área,
pois, os policiais são pressionados a apresentar suspeitos imediatamente diante
de um crime de repercussão. Assim, quando são pressionados pelos poderes mais
relevantes do estado, tendem a perder o controle da qualidade investigativa, e
assim, incluir nomes que aparentemente teriam participado de atos criminosos.
Ao proteger a testemunha-chave de Vigário Geral, os
dirigentes da segurança pública provocaram uma explosão dentro do aparelho
policial. Ivan Custodio não deu somente os nomes dos participantes da chacina (coincidentemente
ele era sócio criminoso de um dos quatro policiais militares assassinados dois
antes da chacina, em Vigário geral, e que provocou a reação da força policial),
mas revelou uma rede de policiais envolvidos com o tráfico de drogas, extorsão,
extermínio, mineiras, entre outros crimes pesadíssimos.
Mesmo com Larangeira tentando desqualificar um inimigo- o coronel
Brum- , este, no entanto, era difícil de ser flagrado como corrupto. Sua qualidade
investigativa a mídia respeitava. Nos
anos 1990, foi responsável pelo estouro de grandes quadrilhas policiais ligadas
a crimes de todos os tipos no estado do Rio de Janeiro. Foi o policial que
investigou e comandou o estouro da fortaleza do banqueiro de jogo de bicho
Castor de Andrade, em 1993, que provocou a maior investigação do Ministério Público
nesta área. A investigação encontrou as chamadas “listas de propinas” do jogo do bicho,
onde, ali, estavam listado nomes de altas autoridades, até do próprio Nilo Batista,
e de vários artistas, advogados, jornalistas, policiais, atletas, deputados,
vereadores. Ou seja, a rede do crime organizado no Rio de Janeiro, realmente, era extensa.
Por fim, Borges, apesar de crítico contundente da gestão
Leonel Brizola no governo do estado do Rio de janeiro, a partir de 1983, não
tem pudor em dizer que o coronel negro Carlos Magno Nazareth Cerqueira, foi um
grande comandante da tropa. Ele, Borges, não afirma que Nazareth Cerqueira foi
corrupto. Ao contrário, reafirma que era um homem integro.
Na verdade, Borges, aqui, não detalhou a biografia de um
ícone da PM fluminense. Nazareth
Cerqueira foi o grande policial do Brasil dos últimos 40 anos. Ele modernizou
completamente a Polícia Militar do Rio de Janeiro, foi o introdutor da prática
dos direitos humanos na abordagem policial, mostrou que a PM se baseava no
racismo ao atuar nas ruas, criou diversas unidades que fizeram história na
tropa como o Proerd(Programa Educacional de Resistencia às Drogas), aplicado em
escolas públicas e privadas do Rio de Janeiro e depois difundido em todo país.
Mas, de qualquer modo, estamos diante de um livro
fundamentalmente importante para se compreender as contradições, perspectivas e
deslizes da segurança pública no Rio de Janeiro nos últimos 30 anos. Borges não
tem pudor em desvendar um passado sombrio que ele viveu como policial e também
como réu de um crime que não cometeu. Esperamos que esta obra possa ganhar
importância para futuramente possamos discutir com mais profundidade as
corporações policiais.
*Jornalista,
pesquisador e professor da PUC-Rio. Autor de “ O negro na Polícia Militar: cor,
crime e carreira no Rio de Janeiro” e “ Mães de Acari: uma história de protagonismo social”.