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Sexta-feira, 29 de Agosto de 2014
Vigário Geral: 21 anos da chacina que matou 21
Por Fábio Lau e Douglas Mota
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Foto de Mário Leite - Jornal O Dia - em 30 de agosto de 1993 |
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- Não me matem que eu sou trabalhador. Trabalho na gráfica ali fora - implorou Cleber, procurando no bolso a carteira de trabalho.
- Você vai morrer aqui mesmo - responderam.
- Pelo amor de Deus, moço, não me mate - insistiu o gráfico. Mataram.
Cleber Alves, 23 anos, ia para casa naquela madrugada de segunda-feira, 30 de agosto de 1993. Foi interceptado por um grupo de PMs de um total de trinta e tantos que invadiram Vigário Geral. Duas madrugadas antes, os traficantes daquela favela havia matado quatro PMs na Praça Catolé do Rocha.
O conjunto de acontecimentos colocaria o Rio de Janeiro e o Brasil de joelhos diante de mais um processo por violação dos Direitos Humanos na OEA. Cleber seria o primeiro a morrer por aquele grupo que invadiu a favela, cortou linhas de telefones dos orelhões e a luz elétrica. Outras 20 mortes viriam em seguida. Oito delas sobre uma mesma família. Um núcleo evangélico na entrada da favela. Todos mortos. Todos inocentes.
Vinte e um anos depois Conexão Jornalismo encontrou alguns personagens que vivenciaram, cada um ao seu modo, aquele filme de horror. Pessoas do Judiciário, da Imprensa, da Polícia Militar, comunidade que lembra e revela que a ferida continua aberta.
Prisões ocorreram. Algumas condenações. Muitas injustiças. Mas o fato é que aquela chacina, que já não é a maior tragédia deste perfil no Rio, insiste em não se colocar no passado. Ela teima em retornar a cada novo acontecimento violento que ocorre no Rio e no país.
O Fuzil AR 15
O Rio de Janeiro descobria, naquela chacina, um fuzil americano que era a versão civil do M16, arma de assalto usada dois anos antes na Guerra do Golfo. O fuzil foi usado pelo bando de Flávio Negão, que matou os quatro PMs da Praça Catolé do Rocha, e também foram usadas pelos invasores para eliminar moradores inocentes.
A partir dali, O AR 15 ficaria conhecido como uma espécie de vírus incontrolável capaz de destruir famílias, lares, sonhos e acima de tudo um projeto de polícia humanitária. Um médico do Hospital Souza Aguiar, com o passar dos anos, foi reconhecido como o especialista em tratar ferimentos dos sobreviventes do AR. Quando sobreviviam.
Depoimentos des pessoas que estiveram presentes na história que marcou o Rio
Mário Leite (fotógrafo de O Dia) -
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Mario Leite: difícil esquecer |
Atravessando a passarela para se entrar em Vigário Geral, já dava prá sentir o clima de tragédia, como sempre acontece nesses casos; ainda mais naquele calor, silêncio total, seguindo pelas ruas e ruelas. Corpos pelo chão de terra, moscas, moradores passando e olhando com aqueles olhares aparentemente normais. Imagino que eu também devia estar com esse mesmo olhar, pois nessas matérias sempre acontece comigo uma espécie de transe, um estado mental no qual nada pode me afetar a ponto de passar mal.
Bombeiros começaram a carregar os corpos em direção à passarela, e aí já havia e expectativa da foto de todos os corpos juntos. O tamanho da tragédia visualmente falando. Não sei quanto tempo durou isso, mas não foi leve. Era a nítida noção do absurdo voltando à superfície.
Tudo pronto: uma multidão se posiciona em volta dos corpos e faço retrato de uma história sem fim. Grupos policiais rivais, cavalos - corredores, etc. Não sei se foi esclarecido alguma coisa ou temos que que ficar imaginando o mais provável.
Voltei lá em outra situação, para conhecer o Centro Cultural Waly Salomão do Afro-Reggae. Muito bom, muito vivo (Mario Leite, 21 anos depois, mora em São Paulo).
José Muiños Piñeiro - promotor de Justiça do III Tribunal do Júri -
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Homenagem perene às vítimas |
Era uma tarde de domingo, 29 de agosto, e eu estava no Riocentro com meus filhos na Bienal do Livro. A seleção brasileira de futebol estava jogando com a Bolívia, se não estou enganado, pelas eliminatórias da copa de 1994. Na ocasião eu era promotor de Justiça no II Tribunal do Júri e já estava a frente do caso da CHACINA da CANDELÁRIA, ocorrida no mês anterior e na qual morreram oito jovens, alguns ainda criança. Não poderia imaginar que uma nova chacina aconteceria ainda naquela noite e, pior, a ação penal também ficaria sob a minha responsabilidade e a de Maurício Assayag, meu colega no Tribunal. Foram duas tragédias, duas grandes barbáries que mancharam a cidade "maravilhosa" de sangue inocente. No caso de Vigário Geral, oito integrantes de uma família evangélica morreram covardemente assassinados dentro de casa. Sabia que as atenções dos meios de comunicação, da sociedade carioca, fluminense, brasileira e da comunidade internacional ficariam voltadas para a apuração judicial dos fatos. Foi assim por muitos anos. Todos os dias havia matéria nos jornais. A cobrança era quase insuportável. Ao mesmo tempo em que tinha a obrigação de fazer justiça, isto é, obter a condenação somente de quem era culpado, a preocupação em evitar uma impunidade me corroía o pensamento. Por muito tempo uma noite tranquila de sono foi algo inatingível, o que somente piorou quando foi descoberto um plano para matar um dos promotores do caso ou a própria juíza a frente dos trabalhos. Muitas falhas na investigação policial comprometiam um resultado justo. Apesar disso, consegui levar vários acusados aos julgamentos pelo júri. Fiquei responsável pelo primeiro julgamento de um dos quatro chacinadores da Candelária e do primeiro réu a ser julgado no caso da Chacina de Vigário Geral. Felizmente os jurados aceitaram a tese da acusação e obtive as condenações, respectivamente, a 300 anos e 449 anos de prisão. Com esses resultados comecei a me sentir um pouco mais leve, o stress começava a retroceder. Faz vinte e um anos que a Chacina de Vigário Geral aconteceu. Coincidentemente, foram 21 vítimas. A atuação no caso, não tenho dúvida, deu destaque a minha carreira e me alçou a grandes e novas responsabilidades, chegando, por duas vezes , a ser nomeado Procurador Geral de Justiça (o Chefe do Ministério Público) após indicação dos meus colegas, tendo recebido em ambas a maior votação. Importante, contudo, é ter a consciência de que procurei fazer a justiça e que se alcancei um bom resultado, devo à confiança que os familiares das vítimas da chacina mantiveram no meu trabalho, apoio fundamental nos momentos mais difíceis. O tempo passou, mas é importante sempre lembrar daquela tragédia social para que nunca seja ela esquecida, no mínimo em homenagem perene às vítimas.
(José Muiños Piñero hoje é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Fábio Lau - jornalista de O Dia
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Homônimo inesperado |
Sim. Eu morri um pouquinho naquela chacina. Em meio aos 21 abatidos covardemente por policiais e milicianos havia um jovem com meu nome: Fábio Pinheiro Lau tinha 18 anos. Morreu ao lado de motocicletas na Praça Catolé do Rocha porque estava na hora errada e no lugar errado. Foram muitos tiros. Estive com o pai dele e, diante de homem sofrido e sem esperança no olhar, me vi diante de um espelho. Bastaria estar vivo e naquela hora e lugar para morrer atravessado por balas de fuzis naquela madrugada fria do inverno carioca. Foram dias e dias de cobertura incessante. Conheci o pai do Flávio Negão numa matéria dividida com o repórter Sérgio Torres, da Folha. Vinte e um anos depois muita coisa mudou na minha vida. E na cor do cabelo também. Mas nem tantas mudanças assim ocorreram em Vigário Geral. A comunidade segue sua sina: cercada por linha do trem, Linha Vermelha e Acari. O abandono de sempre e a precariedade da infraestrutura urbana. Assim como eu, Fábio Pinheiro Lau, meu xará, 21 anos depois, teria muita história para contar. Mas não se pode falar o mesmo da quele palco chamado Vigário Geral.
(Fábio Lau hoje trabalha em seu próprio site de notícias, Conexão Jornalismo)
Iracilda Toledo - perdeu o marido, o ferroviário Alberto Toledo, na chacina.
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Iracilda Toledo: netos deram luz a agosto |
"Eu tinha ido à Igreja e deixei o Beto em casa com meu filho, Humberto. Eles foram ao bar comprar cigarro e acabaram assistindo ao jogo do Brasil com a Bolívia, que terminou em 2 a 0 e nos classificou para a Copa do Mundo. Meu marido ficou lá comemorando a vitória, mas Humberto, que tinha 12 anos, voltou para casa por ordem do pai. Tinha aula cedo no dia seguinte.
Nós fomos dormir até que por volta da meia-noite acordei com meu sogro batendo na janela e chamando o Beto. Expliquei que estava no bar comemorando por causa do jogo. Aflito, meu sogro respondeu que todos que estavam no bar tinham sido mortos. Não quis acreditar. Procurei por toda a comunidade, mas não o encontrei.
Uma hora da manhã, meu compadre teve coragem para entrar no bar. Identificou que Beto era um dos mortos. Ele tinha um cargo de confiança na Rede Ferroviária Federal, enquanto eu não trabalhava. Graças a Deus tenho uma família estruturada e consegui abrigo com meus pais e irmãos.
Saí do cidade, criei meus filhos no interior e só voltei porque começaram a cursar faculdade. A mais nova, que tinha 9 anos na época, fez Psicologia. Já Humberto, hoje com 33, Engenharia. Nenhum de nós esquece o ocorrido. Vão se passar cem anos e aquilo vai continuar na memória.
Apesar de tudo, o mês não ficou marcado negativamente na minha vida. Meus dois netos nasceram em agosto". (Iracilda mora no Rio, com seus dois filhos, trabalha, e ajuda a cuidar dos netos).
Sargento da PM Sérgio Borges, o Borjão -
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Sérgio Borges: perda de um filho |
"Você pode imaginar o que é uma pessoa inocente ser acusada da noite para o dia de um crime de repercussão internacional, baseada na palavra de um marginal da lei, Ivan Custódio? Sem culpa amarguei quatro anos no cárcere. Fui humilhado juntamente com minha família e sofro sequelas até hoje. Meu filho foi assassinado por conta deste caso.
A Justiça foi feita a partir de investigação que fiz com outros policiais inocentes. Fizemos o mesmo na chacina da Candelária. O processo foi totalmente fraudulento e feito pela Polícia Militar, que não tem competência constitucional para investigação.
O Rio de Janeiro naquele momento ia sofrer uma intervenção federal. O Coronel Valmir Alves Brum*, almejando ocupar o lugar do Coronel Emir Laranjeira, aproveitou do episódio para alcançar o sucesso político. Ele acusou 23 policiais, hoje reconhecidamente inocentes pelo hoje desembargador Muiños Piñeiro, que era o promotor da época.
As investigações refletem duas palavras: impunidade e injustiça. Os culpados não foram presos e inocentes passaram quatro anos ou mais na prisão. Perdi meu filho, a saúde e 21 anos da minha vida.
Escrevo um livro contando toda a verdade, que será publicado quatro meses. O prefácio é do jornalista Carlos Nobre, que escreveu a obra "Mães de Acari", e a apresentação é do promotor que nos acusou e depois nos inocentou.
Com sede de vingança por causa da morte dos PMs, os matadores que foram a Vigário começaram a matar todos os que tinham o pré-nome ou o apelido que constavam naquela lista. A revanche não foi motivada pela morte do sargento Ailton, mas sim pelas dos colegas que o acompanharam.
Tanto as vítimas e seus parentes, quanto os policiais inocentes, foram usados pelo sistema para uma manutenção de poder, como tem sido feito desde que o Brasil é Brasil. (Sérgio Borges Cerqueira hoje é escritor e advogado)
Personagens da história da Chacina:
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Flávio Negão: sopa de siri no terreiro com jornalista |
Flávio Pires da Silva, o Flávio Negão - traficante determinou a morte dos quatro PMs. Um deles, o PM Ailton, teria sequestrado e assassinado seu irmão. Morto pela polícia anos depois. "Alguns dias após chacina eu e o repórter Nilton Claudino nos encontramos com Flávio Negão. O traficante estava cercado por comparsas e falou sobre a execução dos PMs e a chacina. Dividimos duas horas de conversa e um prato fundo, de plástico, com sopa de siri" - Fábio Lau
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Cristina Leonardo: atuação em Direitos Humanos |
Cristina Leonardo - A advogada foi uma das mais atuantes profissionais na defesa dos Direitos Humanos nos casos de violência ocorridos no Rio de Janeiro na década de 90. Desaparecimento de menores, chacinas da Candelária, Vigário e violência contra a mulher.
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Valmir Brum: prisões e injustiças |
Valmir Alves Brum* - O coronel da PM era um dos mais odiados policiais da corporação por conta da sua atividade repressora. Ajudou a prender muitos policiais violentos, mas protagonizou também casos flagrantes de injustiça contra acusados. Em um deles deteve o único soldado negro de uma unidade da PM porque o acusado do crime tinha o apelido de "Pelé". Virou sinônimo de xerife da PM na década de 90.
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Zuenir Ventura: Cidade Partida permanece |
Zuenir Ventura - jornalista do Jornal do Brasil, escreveu o livro Cidade Partida a partir da chacina. Participou de projetos que tentava unir um Rio de Janeiro dividido entre os ricos e pobres, a zona turística e a cidade de verdade. A Fábrica de Esperança, criada ao lado da favela para oferecer estudo e trabalho, fechou.
Nilo Batista - O vice-governador e chefe de Polícia Civil enfrentava politicamente duas chacinas e pouco mais de um mês. Bom frasista, disse, ao desembarcar em meio a multidão em Vigário, que naquele momento havia sido quebrada a barreira entre polícia e bandidagem. O crime faria surgir um outro personagem, o pastor Caio Fábio, que se transformaria numa espécie de guru espiritual de Nilo Batista.
Lúcio Natalício - Repórter que estava responsável pela madrugada no Jornal O Dia, Natal foi o primeiro jornalista a chegar à comunidade e a se deparar com o quadro. Apurou nomes, motivos aparentes da chacina e localizou testemunhas. Pela manhã, quando as equipes chegaram à Vigário Geral, poucas informações restavam. Foi homenageado pelo seu empenho em momento tão difícil. Ele morreu no final do ano passado.
Homenagens
Acontece nesta sexta-feira (29) na favela de Vigário Geral uma homenagem aos mortos noa chacina. O culto Evangélico começa às 16h, em frente à Casa da Paz. Familiares das vítimas depositarão flores no local da tragédia.
Já em Cabo Frio, será exibido no Centro Cultural Carlos Scliar o documentário dirigido pelo cineasta Milton Alencar "Vigário Geral: Lembrar para não Esquecer". Logo após acontece um debate com o desembargador José Muiños Piñeiro Filho que, na época, atuou como um dos promotores de justiça e obteve no Tribunal do Júri a condenação do primeiro chacinador a 449 anos de prisão. Assista: