REPORTAGEM DE VEJAVIGÁRIO GERAL
Data: 8 de setembro de 1993
O rosto da barbárie
Uma quadrilha de PMs que integram
um grupo de extermínio invade a favela
de Vigário Geral com armamento pesado
e massacra 21 inocentes
Madrugada de domingo 29. Praça Catolé da Rocha, na favela de Vigário Geral, Zona Norte do Rio de Janeiro. Quatro PMs são assassinados com tiros de AR-15, uma arma americana de alta precisão, e disparos de pistolas automáticas.
Madrugada de segunda 30. Cerca de trinta homens encapuzados se espalham pela favela de Vigário Geral. Em sessenta minutos, 21 moradores foram executados. Na rua, no bar e em casa. Vinte trabalhadores e uma estudante.
Sexta-feira passada, no Batalhão de Choque, no centro do Rio. Cinco PMs são presos, suspeitos da chacina. Na casa de um PM, Hélio Vilário Guedes, a polícia encontrou dezessete capuzes, uma peruca e uma mira a laser para pistolas. Na residência de outro, o cabo Paulo Roberto Borges da Silva, descobriu uma carga pesada de armamentos, inclusive munição para pistolas 380, 45 e 9 milímetros e fuzis AR-15, armas usadas no massacre, e um Santana verde metálico, igual ao carro visto por uma testemunha da chacina.
"Bandido é bandido, polícia é polícia. Como água e azeite, não se misturam", disse certa vez o bandido mais famoso do Rio, Lúcio Flávio Villar Lirio. Morto na cadeia com 28 facadas, em 1975, Lúcio Flávio protagonizou dezessete fugas da prisão, acabou indiciado em 500 inquéritos e tornou-se estrela do filme . Mas sua frase foi sepultada na Vigário Geral. Romperam-se as fronteiras entre a polícia e a bandidagem. "Está claro que esses policiais têm um grupo de extermínio e matam", afirma o vice-governador, Nilo Batista, que acumula o cargo de secretário da Polícia Civil. Os cinco PMs presos têm uma história comum. Todos passaram pelo 9º Batalhão da PM, a corporação a que estavam vinculados os quatro PMs assassinados em Vigário Geral. A investigação sobre a barbárie de Vigário Geral produziu a prova científica de que uma parte da PM fluminense apodreceu.
Os principais indícios obtidos pela polícia têm origem no relato de uma testemunha entrevistada pelo telejornal Aqui Agora, do SBT, e até agora mantida no anonimato. O depoimento conta detalhes da morte dos quatro PMs e, no dia seguinte, dos 21 inocentes. É uma seqüência lógica e indica que os policiais foram à favela para extorquir os traficantes. Estacionaram o automóvel na Praça Catolé da Rocha e foram até a boca de drogas da favela. Dinheiro no bolso, fizeram o caminho de volta para o carro. O cerco dos traficantes estava armado. Sob a liderança de Flávio Pires da Silva, de 23 anos, conhecido como "Flávio Negão", o chefe do tráfico que acusa a corporação de ter matado seu irmão em 1992, começou o tiroteio. O sargento Aílton Ferreira dos Santos morreu com um tiro na nuca. O soldado José Santana, com um tiro na cabeça. O soldado Luis Mendonça foi alvejado no olho direito. O cabo Irapuan Caetano, o único que já havia embarcado na viatura, recebeu um disparo na testa e outro no olho.
Ainda não existem provas cabais da extorsão. Mas a perícia mostra o grau de selvageria dos homens que promoveram a chacina no dia seguinte. Nenhum dos 21 mortos teve chance de se defender. Na noite de domingo, os encapuzados se espalharam por pontos diferentes da favela. Na Praça Córsega, um grupo metralhou todos os trailers de ambulantes que vendem bebidas e refrigerantes e fez a primeira vítima, Fábio Pinheiro Lau, de 17 anos. Depois executou Hélio de Souza Santos, de 38, metalúrgico desempregado. Minutos mais tarde, explodiu uma bomba no Bar do Caroço, propriedade do aposentado Joacir Medeiros, 69 anos. O grupo encapuzado chegou ao bar dando "boa-noite". Todos responderam. Um quis saber quem trabalhava. Todos trabalhavam. O grupo fez menção de ir embora. De costas, um encapuzado jogou a bomba, de efeito moral. Começaram os tiros. Joacir, dono da birosca, foi o primeiro. O enfermeiro Guaracy Rodrigues, de 33 anos, caiu no salão. No balcão foi morto o serralheiro José dos Santos, de 47. No banheiro caiu Paulo Roberto Ferreira, 44, motorista. No depósito, dois: o ferroviário Adalberto de Souza, 40, e o metalúrgico Cláudio Feliciano, 28. O último morreu no corredor, sem saída: Paulo César Soares, 35.
Outros dois grupos agiam pelas ruas. Cortaram os fios dos telefones públicos da favela. Encontraram o gráfico Cleber Alves, 23 anos, que ia para casa. Testemunhas contaram o diálogo:
- Não me matem que eu sou trabalhador. Trabalho na gráfica ali fora - implorou Cleber, procurando no bolso a carteira de trabalho.
- Você vai morrer aqui mesmo - responderam.
- Pelo amor de Deus, moço, não me mate - insistiu o gráfico. Mataram.
O terceiro grupo estava na rua de acesso a outro bar. No caminho, vinham dois amigos. Clodoaldo Pereira, de 21 anos, e Amarildo Baiense, de 31. Mais duas mortes. "Clodoaldo alegou que era trabalhador", diz seu pai, o pintor de paredes Aprígio Pereira da Silva, 54 anos. Perto dali, o mecânico Edmilson Costa, 23, também voltava para casa. à sua frente iam sua mulher, Rose Maria, 25, e as duas filhas pequenas. Foram pegas pelos encapuzados. "Edmilson veio em meu socorro, pedindo para me deixarem", contou Rose no cemitério. Os assassinos fizeram uma troca. Mandaram Rose correr com as crianças, sem olhar para trás. Ficaram com Edmilson. Ela ouviu o marido implorar "não me matem, sou trabalhador". Mataram.
Os assassinos ainda invadiram a casa em frente, do vigia Gilberto Cardoso dos Santos, 61 anos. Família de evangélicos, todos dormiam. Luciano, 24 anos, acordou com o barulho. Quis levantar-se. "Deita aí, não levanta não", ordenou um assassino. Luciano quis saber o que estava acontecendo. Segundo relatou depois uma das crianças que fugiram, não teve resposta. "Aqui somos todos trabalhadores", disse. Ouviu uma sentença. "Mas vamos matar todos desta casa." Começaram por Luciano e Lucinéia, 23 anos. No quarto, mataram dona Jane, 58 anos, abraçada com a nora Rúbia, 18 anos. Aos seus pés, ficaram os corpos do marido e da filha Lucia, 33 anos. Na sala, Luciene, que na terça-feira completaria 16 anos, morreu dormindo no sofá. Lucinete, 27 anos, caiu perto da porta. Os assassinos mandaram as quatro crianças, entre 9 e 5 anos, taparem o rosto antes de morrer. Até um dos criminosos achou que era demais. Mandou que elas fugissem. A mais velha, de 9 anos, comandou a fuga. Subiram uma escada de acesso à laje no pavimento superior. Dali, pularam para a rua, de uma altura de 2 metros. A menina carregava no colo sua prima, um bebê de 15 dias.
"Os cinco policiais presos estão vinculados a um grupo conhecido como Cavalos Corredores", diz o tenente-coronel Valmir Brum, que comanda as investigações. É mau sinal pertencer aos Cavalos Corredores. O grupo, formado por policiais do 9º Batalhão, foi batizado com esse nome exótico pelo hábito de entrar nas favelas correndo e atirando. Surgiu na época em que o 9º Batalhão estava sob o comando do coronel Emir Larangeira, que deixou o cargo em abril de 1990 para assumir uma cadeira na Assembléia Legislativa como deputado estadual pelo PSDB. Pouco depois, os Cavalos Corredores foram acusados de seqüestrar e chacinar onze meninos do bairro de Acari, na área do 9º Batalhão. O coronel Larangeira saiu em defesa de seus ex-comandados. Mas houve uma curiosa coincidência. Em 1991, uma das mães de Acari, Edméia Eusébio, foi à polícia reconhecer os acusados. Um deles era o cabo Paulo Roberto Borges da Silva, um dos presos por suspeita de participar da matança em Vigário. Na hora do reconhecimento, apareceu o coronel Larangeiras. Munido de um advogado, contestou a legalidade do processo. Intimidada, dona Edméia não reconheceu ninguém. Seis meses depois foi assassinada.
Na semana passada, o coronel-deputado subiu à tribuna para pedir o impeachment do governador Leonel Brizola em nome do horror de Vigário Geral. Ao voltar para o gabinete, teve uma notícia desagradável. Além das armas e capuzes apreendidos na casa dos PMs, a polícia encontrou uma carteira de assessor com o brasão da Assembléia. O documento, expedido em fevereiro de 1991, tem validade até 1995 e está no nome do mesmo cabo Borges da Silva. A carteira mostra que o cabo é assessor de imprensa do deputado. "Essas carteiras não servem para nada, só facilitam o acesso ao meu gabinete", explica-se o coronel-deputado. "Dei um monte delas para PMs meus amigos."
A cara do fim do mundo
Atrás de um muro de 3 metros de altura
sobrevivem os 30.000 moradores de
Vigário Geral, um lugar aonde o poderpúblico, quando entra, chega atirando
Marcelo Auler e Marcos Sá Corrêa
No Parque Proletário de Vigário Geral, o poder público tem marcas de bala. As marcas são visíveis em escala monumental na fachada do Ciep Mestre Cartola, onde a arquitetura de Oscar Niemeyer foi tantas vezes picotada por tiros perdidos que não se retocam mais no reboco as cicatrizes do fogo cruzado. Estão inscritas nas baixas da semana, em que saiu ferido o servente Ubirajara Santos e ficou viúva a merendeira Maria de Lourdes dos Santos. E ficaram na memória do ex-prefeito Marcello Alencar, que no passado gravou ali dois vídeos de propaganda eleitoral, levando a escola para a campanha na TV como troféu administrativo. "A escola fica entre duas favelas dominadas por grupos rivais de traficantes, o de Vigário Geral e o de Parada de Lucas. Era tanto tiro que tive de mandar erguer um muro alto em volta do prédio, ou não haveria aula", recorda Marcello Alencar.
Recorda errado. "Cadê o muro?", perguntava na manhã de quinta-feira passada o diretor, Alberto Silva, ao reabrir o Ciep três dias depois da carnificina que botou Vigário Geral no mapa-múndi. "Estamos aqui há sete anos. Temos 59 funcionários e professores. Nunca um deles foi assaltado dentro da favela. Temos 500 alunos da 1ª à 4ª série. Jamais houve criança ferida. Temos televisão, videocassete, freezer e aparelho de som na escola. E não houve nenhum roubo de material até hoje", informa o diretor.
Engana-se o ex-prefeito. Exagera o diretor. Não existiu o tal muro, mas o transformador que dá luz ao Ciep está escondido num bunker. "Antes, o transformador ficava no alto do poste. Perdemos dois no bangue-bangue", diz a professora Ana Maria Bento Mota, a primeira diretora do Ciep Mestre Cartola. Ela tem tarimba. Passou 23 anos dirigindo escolas públicas entre as favelas de Parada de Lucas e Vigário Geral. Hoje cuida de outro Ciep inóspito, o Brandão Monteiro, encravado entre treze favelas da Penha. A professora Ana Maria já viu tanto cano de revólver trabalhando no magistério que agora tem medo de ser assaltada e reagir com desdém.
"Robertinho de Lucas", a atual celebridade do tráfico no local, foi outrora seu aluno José Roberto da Silveira Filho. "Para a coisa funcionar, tive de educar o que chamo de 'meninos'.", diz Ana Maria. Filha de militar, a professora mora numa rua, no subúrbio de Bonsucesso, onde a segurança é garantida por uma banca de jogo do bicho. Há um ano e meio, deixou implantada, na forma de escola, a única repartição que atesta a existência do governo na favela de Vigário Geral - um lugar aonde o serviço público, quando entra, chega atirando.
Faz diferença uma escola municipal num lugar como Vigário Geral. Do lado de fora, há esgotos a céu aberto. Dentro, bebe-se água filtrada em copo limpo, fala-se em telefone sem ser orelhão e combatem-se os surtos de sarna que todo inverno infestam as crianças. As campanhas de vacinação acampam no Ciep. O portão por onde entram os 350 alunos de Parada de Lucas fica do lado oposto ao que é usado pelos que vêm de Vigário Geral. No pátio e nas salas de aula mistura-se e reconcilia-se a próxima geração das duas favelas desafetas.
Fora a escola, o outro sinal da existência de autoridades constituídas na vizinhança de Vigário Geral é a linha imaginária que passa atrás do Ciep, separando o labirinto de construções irregulares de um matagal baldio de contorno rigidamente geométrico. É o fundo de um terreno do Centro de Reparos do Corpo de Fuzileiros Navais. Lá não se põe um tijolo. Não há muro nem invasão. Essa demonstração abstrata de autoridade parece estar ali para lembrar que os militares têm um projeto para o Brasil.
O resto da paisagem de Vigário Geral é um cenário ocupado por símbolos das capitulações governamentais. Afundada num solo baixo, com todos os horizontes tapados por bibocas, a favela só avista do mundo exterior os jatos a caminho do aeroporto internacional da ilha do Galeão, que na aterrissagem voam tão baixo que se pode ler o logotipo na fuselagem. Vigário Geral fica a meia hora do Rio, quando o trânsito está limpo na Avenida Brasil, mas não há acesso direto da favela à porta de entrada da cidade. O segundo trecho da Linha Vermelha, que fará a ligação expressa da subida da serra com a Zona Sul, também está passando ao largo. Há quarenta anos, o Parque Proletário de Vigário Geral se esparrama atrás de um muro de 3 metros de altura, cercando um ramal secundário de trem suburbano.
Só existem duas entradas na favela, além de um buraco no muro do trem, que passava diretamente pelos trilhos e foi fechado. A primeira é uma rua que atravessa Parada de Lucas, meio asfaltada, meio de terra, e ainda por cima encrespada por um dique de quebra-molas. A outra é uma passarela para pedestres sobre a via férrea, que desemboca na rua onde na semana passada a blitz de extermínio atacou o bar e a família de crentes. Na favela intramuros, começa o outro mundo.
Há cinqüenta anos, a favela começou a fincar as primeiras palafitas numa área alagada onde uma dinastia de proprietários de terras pensou em ganhar dinheiro no começo do século convertendo uma fazenda em loteamento para cariocas na pindaíba. Os invasores aterraram o mangue, trocaram os barracos de madeira por cubículos de alvenaria e canalizaram água para 95% dos 1.500 domicílios, onde atualmente se empilham 30.000 moradores, 2.300 famílias e 1.800 eleitores. Em 1985, a prefeitura adaptou um pardieiro na boca da favela para abrigar a Creche Dona Neuza Brizola. Atendia a 100 crianças. Em 1990, a creche fechou para reformas. Nunca mais reabriu. Segundo uma lenda local, está pagando uma traição eleitoral da comunidade ao vereador pedetista Pedro Porfírio. A Light, como a creche, chegou em 1985, oficializando o fornecimento de luz, que, através de ligações informais, a precedeu por mais de duas décadas. Os moradores não se acostumaram a pagar regularmente as suas contas. A companhia tirou os relógios. Ficou a eletricidade.
"Fizemos tudo sozinhos", diz o presidente da associação de moradores, Nahildo Ferreira de Souza, ferroviário aposentado, ex-militante comunista, comerciante falido de tanto vender fiado. Ele passou na favela 32 de seus 65 anos, perdeu um filho, Adalberto, na tragédia de domingo, sem poder sequer aproveitar-lhe os rins para transplante porque o cadáver ficou doze horas na rua. Nahildo é doente renal. Para viver, faz hemodiálise, um tratamento que o colapso da medicina pública no Rio de Janeiro está quase paralisando. Mas é imortal na favela. Tem seu nome, em letras garrafais, a quadra de esportes polivalente para vôlei, basquete e futebol inaugurada pela associação de moradores no dia 21 de agosto, uma semana antes da matança. A quadra, obra comunitária, está limpa. Separado dela por um muro, o leito da ferrovia, que é público, virou depósito de lixo.
Quadra polivalente naquele lugar não é luxo. Os favelados de Vigário Geral não aderiram ao futebol soçaite por boniteza, mas por falta de espaço - o que talvez explique a seleção de Parreira. O decano da favela, o pintor de paredes Aprígio Pereira da Silva, que se instalou em Vigário Geral em 1954, é de um tempo em que se morava sobre palafitas, porém entre "oito ou dez campos de futebol". Aprígio é testemunha de como Vigário Geral piorou. Pernambucano de Caruaru, fundador do XI Unidos, um time de pelada promovido a associação comunitária, ele criou ali nove filhos. Um deles morreu a tiros na porta de casa há três anos e meio. No domingo, mataram seu genro.
Vigário Geral é a soma de modelos paralelos de crescimento urbano do Rio de Janeiro, criados ao deus-dará e divididos pelo leito da velha estrada de ferro Leopoldina Railway, matriz de alguns dos subúrbios mais remotos da cidade. De um lado da linha, Vigário Geral é um bairro pobre em processo de deterioração. Do outro, é uma favela que nasceu ruim e está ficando inabitável. "As pessoas só pensam em mudar dali", diz a professora Ana Maria. "Fui ao enterro dos 21 moradores na segunda-feira e encontrei vários alunos dizendo que iam embora." Há muitas placas de "vende-se" na porta das casas. Nenhuma parece pintada nesta semana.
Nos livros da prefeitura, as duas metades de Vigário Geral formam uma Zupi, Zona de Uso Predominantemente Industrial, no jargão do Plano Diretor Decenal da Cidade, aprovado em março deste ano. Não será por excesso de fábricas. Ao todo, estão cadastrados 224 imóveis não residenciais - incluindo três postos de gasolina, onze oficinas mecânicas, dezenove botequins e oito supermercados, além dos inumeráveis ferros-velhos. Industrial, no caso, é a falta de serviços próprios de zonas residenciais. Não há um só posto de saúde, para não falar em hospitais, para uma população que deve beirar 50.000 pessoas. O bairro está diminuindo. Tinha 39.020 habitantes em 1980 e 36.742 em 1991. A favela, na mesma década, explodiu. O Instituto de Planejamento do Rio de Janeiro lhe atribuía dois anos atrás 6.428 moradores. A associação comunitária, quase cinco vezes mais. Ou seja: ninguém sabe.
No Arquivo Geral da Cidade, os noventa anos de Vigário Geral não enchem uma página. Na sede da XI Região Administrativa, a informação também é rala. Quem guarda a história do bairro é o carpinteiro aposentado Manoel Pio da Cruz, 63 anos, exemplo pacífico de como as autoridades brotam por geração espontânea nos locais que os governos abandonam. Ele juntou dinheiro para comprar uma casa em Vigário Geral em 1952. Desconfiou da regularidade dos papéis. Procurou os primeiros donos. Foi bater na porta de dona Ida Bulhões Marcial, matriarca da família que comprou fazendas em 1810 e começou a esquartejá-las em lotes exatamente 100 anos depois. Era época de modernização urbana no Rio. Ou seja: despachava-se o populacho dos cortiços cariocas para tirá-lo do caminho das avenidas. Cruz se tornou o administrador das empreitadas imobiliárias dos Bulhões Marcial.
"O bairro era o fim do mundo. O pessoal pobre se interessou logo porque aqui era muito mais barato. O lugar era desvalorizado. Não havia casas. O acesso era difícil. Um terreno custava quatro vezes menos do que na Penha. Até hoje a proporção é mais ou menos essa", ele contou a Maria Elisa Alves, de VEJA. A má-fé vem de longe, nas relações entre os pobres e o direito de propriedade em Vigário Geral. Mas Cruz faz o que pode: "Todo mês recebo pessoalmente o aluguel das dez casas que ela mantém no bairro e levo para a família. Ganho 3% do que arrecado". De quebra, ainda tenta evitar que outros oitenta terrenos restantes no espólio Bulhões Marcial sejam invadidos: "No início esse bairro era uma bagunça. Fui contratado para botar ordem".
Que ordem? Cruz explica: "O Estado sempre foi omisso. O abastecimento de água, por exemplo, só chegou em meados da década de 50". Sinal de que a concepção imobiliária dos Bulhões Marcial não era muito diferente da praticada pelos favelados: primeiro se constrói, depois o governo urbaniza. Mas governo no Rio não merece a confiança nem do pobre nem do rico. Nem sequer do remediado: "Sempre foi um sufoco. Os moradores abriam poços em casa para ter água". Agora mesmo, a casa de Cruz completou um ano e meio sem receber uma gota encanada. "Aluguei a casa três vezes e os inquilinos abandonaram. Reclamei diversas vezes, mas ninguém se interessa pelos moradores daqui." Oitenta por cento dos domicílios não têm esgoto. Cruz reside em dois andares, quatro quartos, quintal e varanda. E tem uma vala negra na porta. Conclusão: "A única diferença entre Vigário Geral e a favela do lado de lá é que nela não tem asfalto".
Cruz não está sozinho. "O bairro e a favela são iguais em matéria de saneamento. O governo não dá assistência, esqueceu completamente isso aqui", diz o presidente da Associação dos Moradores e Amigos do lado asfaltado, o metalúrgico Manoel Luís. "Somos todos iguais, todo mundo pobre", diz o vigia Carlos Pinto de Souza. Iguais até perante o tráfico de drogas. Cruz, que está ali para pôr ordem no bairro, admite: "Para conviver com os bandidos, temos que manter o bico calado. Se um malandro de lá pedir água, dinheiro ou abrigo, temos que dar. As regras são as mesmas a que os favelados obedecem". Cinco anos atrás, sua casa serviu de refúgio para dois traficantes escaparem de outros dois traficantes, com o rigor contábil de quem recolhe aluguel e a flexibilidade de quem mora em Vigário Geral: "Deixei eles entrarem e, quando a polícia invadiu a casa, já tinham sumido pelo jardim".
Favelado no Rio de Janeiro não é o morador de barraco. É qualquer deserdado dos serviços públicos. Embora, segundo os cálculos da prefeitura, a cidade esteja em plena febre imobiliária dos "assentamentos populares", neologismo cunhado para o conjunto de favelas e loteamentos piratas. Eles se expandem à velocidade de 80 milhões de tijolos, 20.000 domicílios e 300 hectares por ano. Têm total imunidade contra as posturas municipais, que mal enquadram 35% das edificações. Vistos do alto desses números, dão a impressão de dominar a cidade. De outro ângulo, desenham a caricatura da concentração de renda: metragem média de 30 metros quadrados, 50% de domicílios sem nenhum tipo de instalação sanitária, tudo empilhado em 10% dos terrenos edificados na cidade.
Em fevereiro de 1972, no jornal O Globo, o "bairro septuagenário" arrolava as queixas da população. Eram banais lamúrias suburbanas. "A mosquitada aqui é um inferno." "As três praças estão abandonadas." "Tem muito rato e barata." Na lista, quase desaparecia o aviso: "As duas favelas do bairro escondem dezenas de pontos-de-venda de entorpecentes, especialmente cocaína". Adiante: ".'Marquinho' manda na favela de Vigário Geral, a maior e mais perigosa".
Estreava na imprensa a lenda do foco inviolável de banditismo. Lá dentro, nascia a mitologia inversa, do criminoso tutelar. Dessa época, diz o líder comunitário Nahildo Ferreira de Souza: "Apareceu aqui Marcos Rosa. Vivia em Vigário Geral fazendo assaltos. Mandei chamá-lo. Ele veio a minha casa cheio de armas. Reclamei que ele assaltava nossa gente. Ele me deu razão. Decidiu que não haveria mais roubo dentro da favela. Só que um tal de 'Zé do Beiço' resolveu roubar um aparelho de televisão. Marcos Rosa o obrigou a devolver. Depois teve um rapaz que tentou estuprar a prima e perdeu um pedaço do dedo".
Ainda havia posto policial na favela. Ele foi suprimido nos anos 80, ao mesmo tempo em que começavam a sair no jornal notícias sobre a guerra entre os traficantes de Parada de Lucas e Vigário Geral e as escaramuças com a Polícia Militar. A vindita entre as favelas é debitada a uma partida de futebol, oito anos atrás, quando a torcida de Parada de Lucas matou o goleiro de Vigário Geral. A ojeriza à PM data de 2 de agosto de 1988, quando soldados do batalhão de Duque de Caxias, disparando de cima da passarela, mataram João Evangelista de Souza, 25 anos, operário.
A ordem desertou a favela. O pátio do Ciep Mestre Cartola está atualmente tomado pelo capim alto, escondendo poços abertos de drenagem cheios de água escura. Por quê? "A Comlurb não aparece mais para capinar", alega o diretor, Alberto Silva. Sua antecessora, Ana Maria Bento Mota, diz que, antes de sumir, os garis começaram a aparecer como se fossem para um combate contra o capim da escola. "Vinham num caminhão cheio de homens. Era para fazer o serviço depressa e sair correndo." A precaução insuflava as desconfianças. A PM atiçava os ressentimentos. Passou a invadir ocasionalmente a escola, no meio das aulas, com alunos no prédio, para procurar esconderijos de bandidos num terraço onde eles jamais estavam. Transformado em escudo nos duelos noturnos entre as quadrilhas e em alvo diurno das batidas policiais, o Ciep não conseguiu até hoje abrir seu consultório médico, equipado até com autoclave e mesa para exame ginecológico. Falta equipe para inaugurar a sala.
A debandada dos serviços básicos rendeu Vigário Geral aos traficantes. A Polícia Militar do Rio de Janeiro tem, por isso, duas investigações a efetuar. Primeiro, o que fizeram seus efetivos na noite das 21 execuções. Depois, esclarecer por que, durante anos, considerou impenetrável uma favela onde professores desarmados ensinam e o caminhão de entrega dos biscoitos Piraquê passa religiosamente uma vez por semana, só com um motorista e um ajudante a bordo. No trajeto, que é o mesmo do entregador de gás e de outros fornecedores regulares das biroscas encravadas na Rua Antônio Pimentel, passa por Parada de Lucas. Franqueia assim uma fronteira que a PM considera interditada. E estoca as prateleiras de Vigário Geral com atestados de vida normal. Não é traficante que vende, por exemplo, iogurte de morango.
CRISTINA LEONARDO, UMA ADVOGADA QUE DEU ASSISTÊNCIA AOS PARENTES DAS VÍTIMAS DE VIGÁRIO GERAL, NA CONDIÇÃO DE ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO; CUJA PESA SERIAS DENÚNCIAS DE FORJAR TESTEMUNHAS
LENINE APRESENTA TESTEMUNHA
Subsecretario de Seguranca afirma que novo depoimento desmente denuncias e lanca dossie contra advogada que ajudou informante
Fernanda Galvao
Acusado na semana passada de receber propina do traficante Celsinho da Vila Vintem, o subsecretario de Seguranca Pubica, coronel Lenine de Freitas, apresentou ontem um dossie contra a advogada Cristina Leonardo, responsavel por intermediar o programa de protecao a testemunha para o informante Hugo, que depos na quarta-feira na Corregedoria Geral de Policia. Lenine acusa Cristina de comprar um testemunho, em um caso de desaparecimento de uma menina de 9 anos, em 1995.
Lenine tambem apresentou uma nova testemunha, ouvida ontem, que segundo ele, desmascara, o depoimento de Hugo. Luis Claudio, o novo nome no caso, teria levado Hugo a Lenine ha 20 dias, com denuncias sobre Marcio Jose Guimaraes, o Tchaca. O Luiz Claudio desmoraliza esse garoto (Hugo), e mostra que o depoimento dele e contraditorio, afirmou Lenine, que voltou a acusar a advogada e o coronel Valmir Alves Brum, ex-assessor da Ouvidoria da Policia, de forjar um complo contra ele.
Cristina disse que conheceu Hugo na quinta feira. Segundo ela, o dossie apresentado tinha a intencao de desvalorizar a testemunha, e ja foi utilizado contra ela durante o julgamento dos envolvidos na Chacina de Vigario Geral, sem sucesso. Para a advogada, Lenine esta se defendendo prematuramente, ja que Hugo ainda nao depos no Ministerio Publico Federal. Comeco a me preocupar, achando que existe algo por tras disso. Por que ele foi buscar um caso de 95?.
Segundo Cristina, se Lenine tem mais uma testemunha, que a leve ao MP. Ela aproveitou para mandar um aviso: O governador tem de colocar ordem na casa, senao quem vai colocar sou eu. Vou pedir uma intervencao da Assembleia Legislativa na Secretaria de Seguranca pois esta policia cliente lista nao pode existir em um estado democratico, atacou.
Minc quer explicacao sobre exoneracao
Autor da lei que instituiu a Ouvidoria da Policia, o deputado estadual Carlos Minc (PT) vai convocar o secretario Josias Quintal para depor na Assembleia Legislativa. Segundo ele, Josias tera de explicar a exoneracao do coronel Valmir Alves Brum da Ouvidoria. Foi uma intervencao na autonomia do orgao, que estava garantida por lei, disse Minc, que tambem vai questionar a crise que vem envolvendo a Seguranca.
Ja o deputado Sergio Cabral Filho (PMDB), presidente da Alerj, afirmou que, caso fique comprovado o envolvimento de um deputado estadual com o trafico, tomara medidas energicas. A Assembleia nao vai se omitir neste caso, disse. Segundo o regimento da Alerj, infracoes como esta podem levar ate a cassacao do mandato.Palavra de bandido contra a do coronel
O governador Anthony Garotinho disse ontem que as acusacoes feitas ao coronel Lenine de Freitas terao de ser bem apuradas. E a palavra dele (Hugo) contra a do coronel. Entre a palavra de um bandido e a de um subsecretario, eu fico com a do subsecretario, pelo menos ate que as investigacoes sejam concluidas. Mas nao podemos deixar de apurar.
Garotinho disse ainda que ordenou ao secretario de Seguranca, coronel Josias Quintal, a realizacao de uma apuracao rigorosa a respeito do caso.
O deputado federal Milton Temer (PT-RJ) disse ontem que vai acionar a bancada do partido na Alerj para que se instale uma CPI para apurar as denuncias.
(JORNAL: O DIA PAG.: 12)
Por Gustavo de Almeida
Nesta sexta-feira, completaram-se 15 anos da triste chacina de Vigário Geral, quando 21 inocentes foram assassinados da forma mais insana possível, em uma vingança sangrenta que tomou conta do noticiário internacional. A Ordem dos Advogados do Brasil, seção Rio, lembrou a data, mas já é possível perceber que aos poucos a cidade vai deixando as trágicas lembranças da chacina para trás. Os atos vão sendo esvaziados. O noticiário na TV vai ficando mais ralo, e até mesmo os nomes de mortos e matadores vão sendo menos escritos. Até mesmo um dos matadores foi morto em maio, sem que se fizesse muito alarde disto.
Vigário Geral e o Rio de Janeiro se refletem em um espelho, quando somam impunidade e injustiça.
Uma das parentes de vítima teve a indenização negada no fim do ano passado pela Justiça, sem maiores explicações. É obrigação do Estado recorrer, como manda a lei. Mas surpreendeu que em última instância a vítima tenha perdido. É inexplicável. Trata-se de uma senhora que até hoje vive em Vigário, sem maiores perspectivas. Não sabe nem que a vida lhe foi injusta. Já não sabe o que é vida.
Poucos sabem, mas há um PM no caso de Vigário Geral que acabou se tornando vitima. Trata-se de Sérgio Cerqueira Borges, conhecido como Borjão.
Borjão foi um dos presos que em 1995 já eram vistos como inocentes, colocados no meio apenas por ser do 9º´BPM. A inocência de Borjão no caso era tão patente que ele inclusive foi o depositário de um equipamento de escuta pelo qual o Ministério Público pôde esclarecer diversos pontos em dúvida.
Borjão foi expulso da PM antes mesmo de ser julgado pela chacina. Era preso disciplinar por "não atualizar endereço".
Borjão conta até hoje que deu depoimento em seu Conselho de Disciplina sob efeito de tranqüilizantes, ainda no Batalhão de Choque. Seus auditores sabiam disto. "No BP-Choque, fomos torturados com granadas de efeito moral as vésperas do depoimento no 2º Tribunal do Júri, cujos fragmentos foram apresentados à juíza, que enviou a perícia. Isto consta nos autos, mas nada aconteceu", conta Borjão, hoje sem uma perna e com a saudade de um filho, assassinado em circunstâncias misteriosas, sem que ele nada pudesse fazer.
"No Natal fui transferido para a Polinter. Protestei aos gritos contra a injustiça. e Me mandaram para o hospital psiquiátrico em Bangu mas, por não ter sido aceito, retornei e em dias fui transferido para Água Santa. Lá também fui espancado e informei no dia seguinte em juízo, estando com diversos ferimentos, mas sequer fiz exame de corpo delito. Transferido para o Frei Caneca, pude ajudar a gravar as fitas com as confissões e em seguida fui transferido para o Comando de Policiamento do Interior. Após a perícia das fitas fui solto. Dei entrevistas me defendendo e tive minha liberdade provisória cassada e me mandaram para o 12ºBPM a fim de me silenciarem. No júri, fui absolvido. Meus pedidos de reintegração à PM nunca foram respondidos".
A história de Borjão ao longo de todos estes 15 anos só não supera mesmo a dor de quem perdeu alguém na chacina. Mas eu não estaria exagerando se dissesse que Sérgio Cerqueira Borges acabou se tornando uma vítima de Vigário Geral. "Tive um filho com 18 anos assassinado por vingança. Sofri vários atentados e um deles, a tiros, me fez perder parcialmente os movimentos da perna esquerda. Sofro de diabete, enfartei aos 38 anos e vivo com um tumor na tireóide. Hoje em dia tento reintegração à PM em ação rescisória, o processo é o número 2005.006.00322 no TJ, com pedido de tutela antecipada para cirurgia no Hospital da PM para extração do tumor. Portanto, vários atentados à dignidade humana foram cometidos. As pessoas responsáveis nunca responderão por diversas prisões de inocentes? Afinal foram 23 inocentes presos por quase quatro anos com similares seqüelas. A injustiça queima a alma e perece a carne!", desabafa Borjão.
Borjão hoje conta com ajuda da OAB para lutar por sua reintegração. Mas o desafio é gigantesco.
Triste ironia do destino: o policial hoje mora em Vigário, palco da tragédia que o jogou no limbo.
A filha dele, no entanto, me contou há alguns dias que não houve tempo suficiente para esperar pela Justiça e pela PM - Borjão teve que operar às pressas o tumor na tireóide no Hospital Municipal de Duque de Caxias. A cirurgia foi bem. Sérgio Cerqueira Borges vai sobreviver mais uma vez.
Sobreviver de forma quase tão dura como os parentes de 21 inocentes, estas pessoas que sobrevivem mais uma vez a cada dia, a cada hora. No Rio de Janeiro é assim: as tragédias têm vários lados e a tristeza de quem tem memória dificilmente se dissipa. Pelo menos nesta data, neste 29 de agosto que nos asfixia.