"Em Shakespeare a imaginação e a força dos celerados acabam na dezena de cadáveres. Eles não tinham ideologia. A ideologia permitiu ao século 20 experimentar o banditismo em escala de milhões". Claude Lefort, a partir de semelhante juízo sobre os justiceiros políticos, explica o termo "libertário", que "não implica nem exclui crença alguma a priori, mas só a crença que requer adesão à ordem estabelecida, submissão à autoridade de fato, confusão entre a ideia da lei (se falta a lei, não falamos do libertário, mas de um bandido) e as leis empíricas que a pretendem encarnar. A atitude libertária foge das categorias ideológicas e não pode ser codificada em doutrinas" (Um Homem Incômodo, ensaio sobre o Gulag). Lefort tem o respeito da esquerda que pesa os valores e as palavras.
Importa muito examinar a lei nos seus elos com a ideologia. Nos últimos tempos surgiram fortes discussões sobre o tema na imprensa, na universidade e na Justiça brasileiras. Sublinho a distinção lefortiana entre a lei em sentido amplo e as leis que pretendem encarná-la. A tese platônica entra na fórmula usada por Lefort. A lei é um paradigma supremo, inalcançável nos limites do tempo e do espaço. A sua ideia relativiza os modelos políticos ou ideológicos. O libertário enfrenta uma grave aporia: segue a lei, mas não se contenta com a outorgada pelos governantes. Ele age sob vaias dos realistas, recusa o exemplo de Trasímaco e dos que julgam não existir lei além da imposta em nome dos poderosos.
Segundo Platão, Sócrates assumiu atitude correta na aporia legal. É célebre a onomatopeia figurada no diálogo Críton. Os amigos do filósofo queriam a sua fuga após a sentença de morte. "Se eu fugisse, as leis e os atenienses levantar-se-iam dizendo: 'Que fazes, Sócrates? Queres nos arruinar e, conosco, a cidade inteira? Ou pensas ser possível à polis continuar a existir se os julgamentos nela efetuados não têm força alguma e, pelo contrário, perdem toda autoridade pelo arbítrio de meros particulares?'". Leis devem ser obedecidas, mesmo quando decretam a cicuta para o seu adversário. Importa reler a passagem do Críton. Ela resume e anuncia as tragédias dos indivíduos, movimentos sociais e políticos, nos inúmeros Estados, das tiranias aos regimes de liberdade. Na República, Platão mostra que a decadência democrática surge quando os cidadãos "livres" caçoam dos que obedecem à lei, chamando-os "servos voluntários". Com tal licença, nascem os tiranos, morre a democracia.
Se a lei, em sentido absoluto, não pode ser tomada como fetiche ou, no caso oposto, desculpar a desobediência às leis, também é verdadeiro que as segundas, ao contrário da primeira, trazem marcas dos interesses defendidos por líderes ocasionais, o que sempre causou dificuldades jurídicas ao longo dos milênios. Quem deve governar, as leis ou os chefes políticos?
Marcello Gigante, estudioso da questão, anota as teses platônicas (Nomos Basileus). É preciso analisar as leis existentes, pois elas podem não corresponder à ideia da lei (unida ao Bem), mas exprimir a vontade privada dos legisladores ou governantes. Todas as constituições políticas falham, sendo preciso esquadrinhar as ordens que delas brotam para definir o seu grau de acerto. A salvação da cidade reside na obediência às mesmas leis por governantes e governados, pois ninguém está acima da norma legal. Mesmo insinuando algumas pistas falsas sobre o problema (no diálogo Político), Platão proclama que as leis devem ser soberanas, não os homens. Quem impõe ordenamentos que só beneficiam os dirigentes é rebelde, não estadista. Quem, na cidadania, só aceita leis gratas à sua opinião (hoje diríamos ideologia) age como idiota (termo que, na Grécia, identifica os que só defendem os próprios interesses).
Platão entendeu a luta política. Basta ler jornais para saber o quanto seu diagnóstico é certeiro. Parlamentares e governos do Brasil atual, na maioria das vezes, legislam em proveito próprio, agem como lobistas de interesses alheios aos da cidadania. "Na cidade em que a lei é súdita e desprovida de soberania, a destruição é iminente; naquelas, ao contrário, onde a lei é a soberana dos governantes, sendo eles escravos da lei, vejo salvação e todos os bens" (Platão). A realidade brasileira é oposta ao enunciado justo. Aqui, os donos do poder torturam a lei e a distorcem em benefício pessoal ou partidário.
Aristóteles, na Ética a Nicômaco, aprimorou a noção de lei soberana, nela harmonizando a justiça e a equidade (epikeia). O conceito foi bem definido por Leonardo Bruni, pensador e político do Renascimento. "Epikeia é a parte da justiça que os jurisconsultos nomeiam ex bono et equo (do que é bom e equânime). A lei é escrita de certo modo e deve, no entanto, ser interpretada segundo os critérios do bem e da equidade" (De Interpretatione Recta).
Voltemos à aporia inicial: o libertário busca a lei, critica as leis do Estado, mas obedece a elas no mesmo ato em que luta por sua abolição ou por seu aperfeiçoamento. Se não consegue tal coisa, tenta interpretar as leis de maneira a corrigir suas falhas, aplicando-as a pessoas e situações concretas. Ninguém está acima da lei, seja qual for a sua doutrina ideológica. Como diz Lefort, a ideologia leva, cedo ou tarde, aos milhões de assassinatos praticados por justiceiros que se imaginam libertários.
Mas, de outro lado, toda lei deve ser interpretada segundo a justiça. Nem descompromisso nem fetiche legal. A prudência indica o caminho: "Quem dá a cada um o que lhe pertence porque conhece a verdadeira e necessária razão das leis age em constante acordo consigo mesmo e por seu próprio decreto, não por decreto alheio: ele merece, pois, ser reconhecido como justo" (Baruch Spinoza, Tratado Teológico-Político).
Filosofo, professor de ética e filosofia na Unicamp, é autor, entre outros livros, de 'O Caldeira de Medeia' (Perspectiva)
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