"O fim do Direito é a paz; o meio de atingi-lo, a luta. O Direito não é uma simples idéia, é força viva. Por isso a justiça sustenta, em uma das mãos, a balança, com que pesa o Direito, enquanto na outra segura a espada, por meio da qual se defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a impotência do Direito. Uma completa a outra. O verdadeiro Estado de Direito só pode existir quando a justiça bradir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança."

-- Rudolf Von Ihering

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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A CIDADE DO RIO E O RESTO DO ESTADO? FALA BAIXADA!




Com uma área de 43.696 km2, o Rio de Janeiro é, em área territorial, o 24º Estado do Brasil (apenas Alagoas,Sergipe e o Distrito Federal tem áreas menores).

O Estado é formado por 92 municípios (ver lista dos Municípios do Rio de Janeiro).

Região Metropolitana do Rio abrange aproximadamente 20 municípios; é o segundo maior pólo econômico do país, e a região metropolitana mais densamente povoada do Brasil.

Nenhum outro Estado do Brasil apresenta uma concentração de municípios com vocação turística tão alta quanto o Rio.
Como mostrado no mapa, o Estado do Rio mede pouco mais de 200 km no sentido Leste-Oeste, e pouco mais de 150 km no sentido Norte-Sul.

Num raio de apenas 100 km centrado na cidade do Rio, encontram-se as seguintes áreas turísticas (para pesquisa de acomodações, ver hoteis no Rio):
Região Metropolitana: Niterói, São Gonçalo, Maricá, Belford Roxo, Duque de Caxias, Magé.
Região dos Lagos (leste da capital): Araruama, Armação dos Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Carapebus, Casimiro de Abreu, Iguaba Grande, Macaé, Maricá, Quissamã, Rio das Ostras, São Pedro da Aldeia e Saquarema.
Região Serrana: Petrópolis, Teresópolis.
Região do litoral sul (em direção à divisa com São Paulo): Paraty, Angra dos Reis, Ilha Grande, Resende, Volta Redonda.


O principal acesso à capital se dá pelos aeroportos do Rio.
Da capital, partem diversas rodovias, federais e estaduais.

O mapa abaixo mostra as estradas federais que cortam o Rio.

mapa das estradas federais do Rio 

As rodovias mais importantes são:
- BR-116 (Via Dutra, que liga o Rio a São Paulo);
BR-101 RJ(que segue aproximadamente paralela à toda a costa brasileira, até o extremo Nordeste do Rio Grande do Norte).

Com o crescimento do número de cruzeiros que chegam ao Rio, o Porto do Rio tem se tornado importante caminho de entrada no Estado.
O litoral do Estado é bastante entrecortado, o que permite a formação de píers naturais; em Búzios e principalmente em Angra dos Reis, existem diversas marinas para atracamento de iates e pequenas embarcações. 

             

A ocupação da Rocinha inaugura uma nova era: a era das Olimpíadas e mais repressão aos trabalhadores, os pobres e os negros








Enquanto os estudantes da USP lutam pela retirada da Polícia Militar das universidades, e um setor ainda minoritário mas bastante expressivo também parte desta luta na universidade elitista para questionar a polícia também nas periferias e favelas, nas próprias favelas, ainda que de forma incipiente, mas expressivo, moradores, ativistas, artistas, etc. dos morros e favelas, na madrugada do dia 13/11 mais de 4.000 homens invadiam a Rocinha, maior favela do Rio de Janeiro com um verdadeiro aparato de guerra, que supostamente seria contra o tráfico. Soldados do Bope, Batalhão do Choque, policiais civis, fuzileiros navais, polícia rodoviária federal, bombeiros, além dos caveirões, blindados da marinha e helicópteros sustentavam a maior operação feita na cidade para a concretização da 19ª UPP, que agora com o controle das 3 comunidades – Rocinha, Vidigal e Chácara do Céu- concluem o controle quase total da Zona Sul, região onde se concentra a burguesia carioca, cartão postal do Rio.

A mega operação na favela de mais de 120 mil habitantes, abre uma “nova era”, diz Sérgio Cabral. De seu ponto de vista a era da inauguração de UPPs em grandes favelas. Estranhamente é com a Rocinha, e não com o Alemão e a Penha militarizadas desde o ano passado que esta “nova era” teria sido inaugurada. Este ato falho de Cabral é revelador, pode até ser chamada de UPP o que vierem a fazer no Alemão, na Penha e na Maré, mas a parte grossa do projeto, militarizar a Zona Sul e a região da Tijuca e Maracanã já foi praticamente concluída. Para nós também uma “nova era” foi inaugurada domingo, a era das olimpíadas e o começo da grande batalha de contenção e expulsão dos pobres da Zona Sul.

As UPPs vem acompanhadas de grandes obras faraônicas de planos inclinados, teleféricos, passarelas monumentais que servirão também para mostrar um país que pretende-se potência e que cuidaria de seus pobres. Do asfalto é possível tirar fotos de uma nova Rocinha, um novo Alemão.

No entanto, nestas mesmas favelas com grandes obras e com UPPs e/ou ocupadas pelo Exército não existe ou existe muito precariamente serviços básicos que deveriam ser garantidos pelo Estado como a coleta seletiva, esgoto, escolas e hospitais. Com os objetivos militares conquistados, agora os objetivos políticos e econômicos se mostrarão mais claramente. As UPPs não são um projeto de segurança, mas um projeto de cidade e de como gerir o imenso contingente de “pobres urbanos” do Rio de Janeiro como parte de mostrar um Brasil potência.

As UPPs não são um projeto para combater a violência mas sim para mudar a cidade

A geografia das UPPs não permite tergiversações. Duas cidades no país tem unidades deste modelo traçado no PRONASCI (PAC da Segurança): Rio de Janeiro e Salvador. Duas cidades que além de serem destinos turísticos são e serão a cara do país na Copa do Mundo e sobretudo nas Olimpíadas que serão sediadas na capital fluminense. A partir do Rio de Janeiro que já ostenta 14 UPPs a mais que Salvador a burguesia brasileira joga-se em um projeto de como gerir (reprimindo) os pobres urbanos, sobretudo os negros, e ao mesmo tempo como projetar-se mundialmente.

A geografia municipal das UPPs no Rio de Janeiro também não permite tergiversações. Enquanto toda a cidade ostenta favelas, e mais de uma modalidade de crime organizado com ligações com o Estado (tráfico e milícias), as UPPs estão localizadas quase exclusivamente em áreas onde predominava o tráfico (17 de 18) e em áreas onde há óbvios interesses de especulação imobiliária e turismo. Na Zona Sul, região mais nobre do Rio são 4 das 18. Na Zona de expansão imobiliária da Barra e Jacarepaguá mais 1 (Cidade de Deus). No centro, Tijuca, Maracanã e região portuária, regiões com grande interesse imobiliário e para Copa outras 12, e somente 1 na Zona Oeste (Batan no Realengo, comunidade que ficou famosa depois que milicianos torturam repórteres do jornal O Dia).

Este geografia das UPPs mostra como trata-se de um projeto de cidade, toda a discussão sobre combate ao tráfico e drogas é só um pretexto para esta militarização. É preciso combater não só esta militarização como este argumento reacionário sobre as drogas que permite que este Estado, assassino e repressor, regule sobre os nossos corpos, defendemos a legalização de todos tipos de drogas [1]!

As UPPs são para controle dos pobres urbanos e sua remoção por vias financeiras

O projeto de cidade orquestrado por Sérgio Cabral e Eduardo Paes segue esta via que pra além de significar uma profunda transformação na cidade, constitui uma brutal repressão a que os moradores dos morros e favelas são submetidos cotidianamente com os recorrentes esculachos, humilhações, agressões, roubos, estupros e o extremo controle no seu dia a dia, onde são impedidos de exercerem direitos fundamentais, como de ir e vir, se reunirem ou até mesmo ouvir música alta (como aconteceu no absurdo episódio no Alemão há cerca de dois meses e motivou diversas manifestações espontâneas de revolta).

Não se trata apenas de ocupação (militarização), mas de um estado de controle sob a classe trabalhadora e a juventude negra e pobre. Com a crescente militarização da cidade [2], torna-se muito mais fácil a manutenção de uma população disciplinada e a garantia de uma enorme força de trabalho disponível para o mercado, pois são nesses locais onde se localizam os trabalhadores mais precários, terceirizados e que para os capitalistas é fundamental que esses setores se mantenham “na ordem” , não se organizem e não se reconheçam enquanto sujeitos da História. Que para terem melhores condições de vida precisariam antes de mais nada que alguém, com fuzil na mão, lhe imponha regras até se pode ou não pode fazer um churrasco.

Esta militarização do Rio de Janeiro passa por um orçamento de guerra. O Rio de Janeiro já tem um gasto com segurança pública maior do que com educação (R$ 4,9 bilhões contra 4,2 bilhões) [3]. Esta militarização é de dar inveja ao Estado assassino de Israel, imprindo a concentração de 80 habitantes por policial nas comunidades ocupadas quando a média nacional é 400 habitantes por policial. Quando for concluído o plano para o Rio de Janeiro traçado por Lula, Dilma, Cabral e Paes, o Estado do Rio (na cidade a proporção será absurdamente maior) terá cerca de 120 habitantes por policial. Este número só é comparável com Israel que tem uma pessoa em suas forças armadas para cerca de 70 israelenses e palestinos.

Esta militarização passa também pelas diárias desocupações urbanas onde centenas de famílias são desalojadas por conta da “santa aliança” entre os governos e a especulação imobiliária, o que faz com que o Rio seja a cidade do Brasil com o maior índice de moradores de rua [4]. Antes mesmo da ocupação da polícia na Rocinha, os imóveis na região já sinalizavam um aumento de 30% em seus valores. A projeção é que em cerca de 6 meses, os preços se valorizem em cerca de 50 a 100% [5]. O que ocorrerá com os preços do Vidigal será ainda mais impressionante. Esta favela é a jóia da coroa de todas as favelas por estar localizada entre os dois mais nobres bairros do Rio, São Conrado e o Leblon.

Junto da ocupação militar vem a transformação das favelas em “bairros” e suas contas de luz, água, telefone, Internet, e junto da valorização imobiliária promoverão a remoção silenciosa dos pobres destas valorizadas propriedades. O Rio de Janeiro é uma mostra em grande escala do que os urbanistas chamam de “gentrificação” (grosso modo, aburguesamento) a partir de exemplos do Leste de Londres e do Harlem em Nova Iorque. Mas tal como ocorreu no Leste de Londres este ano, a pobreza estrutural a que estão submetidos estes trabalhadores bem como a violência policial tenderão a estourar em revolta. As primeiras mostras disto já vimos nas mobilizações no Alemão este ano.

As UPPs não estão diminuindo a violência, a estatística oficial sim

A polícia não pode combater a violência, e nem é esse seu propósito de existir. Se formos nos limitar à realidade do Rio de Janeiro, exemplos de sua brutal violência contra a juventude negra e pobre não faltam: Chacina da Candelária (1993), Chacina de Acari (1990), Chacina de Vigário Geral (1993), e Chacina no Complexo do Alemão (2007) esta em meio aos jogos Pan-americanos - um prelúdio do que pode-se esperar do Estado e suas forças repressivas diante das Olimpíadas e Copa? Todas chacinas foram protagonizadas por policiais militares (e no caso de Alemão uma chacina conduzida como operação oficial), assim como os milhares de assassinatos desses mesmos jovens falsamente chamados de “autos de resistência”.

Um levantamento feito pelo Ministério Público no mês de julho deste ano, revela que nos últimos dez anos a Polícia do Rio de Janeiro não esclareceu cerca de 60 mil homicídios, sendo que deste total 24 mil sequer foram identificados.

O site do Instituto (Estadual) de Segurança Pública (ISP) ostenta uma matéria que foi divulgada intensamente nas últimas semanas. Ele afirma que “indicadores de segurança tem queda significativa em 2011”. O principal indício disto seria uma redução nas letalidades violentas da ordem de 500 ocorrências de janeiro a julho de 2011, incluindo os classificados como auto de resistência. De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), em 2009 foram registrados 1.048 casos classificados como autos de resistência, e em 2010, 855. Recentemente um pesquisador do IPEA, órgão ligado ao governo federal, aliado de Cabral, desmentiu estes números argumentando que no governo Cabral aumentou mais de 50% as mortes registradas como “motivo desconhecido”, e assim não teríamos nenhuma redução nas mortes violentas. O governo Cabral tenta desconstruir os dados do IPEA, baseados nos dados do ministério da saúde, falando que há problemas no compartilhamento das informações e que o número que valeria seria o da polícia. Finjamos que este argumento interessado fosse correto, pois bem, os próprios números da polícia desmentem a polícia.

Em todos os meses de 2011 registrou-se um aumento do encontro de ossadas e cadáveres. Em julho (último mês com dados disponíveis) a redução em assassinatos e autos-de-resistência foi de 17 ocorrências, porém o encontro de corpos que não constam como letalidade violenta (em que situação uma ossada encontrada em um rio pode ser classificado como algo não violento?) aumentou em 18 ocorrências [6]. A redução da violência é uma falácia, é uma estatística criminosa que a produz contando meia verdade, ou uma mentira por completo.

A mentira estatística é funcional ao sumiço de jovens negros como o menino Juan que foi morto e teve o corpo ocultado pelos policiais. Vale ressaltar ainda que, os policiais militares envolvidos no assassinato de Juan somam juntos 37 autos de resistência, o que reflete nitidamente a podridão da justiça burguesa e o verdadeiro papel da polícia para o Estado.

As UPPs como tentativa de legitimar uma força constitutiva da violência urbana: a polícia

Toda essa repressão é por outro lado, garantida através de uma explícita tentativa por parte dos governos e da mídia de legitimar a todo o momento a polícia mais assassina do mundo, e além disso, disseminar a absurda idéia de sua incorruptibilidade.

No dia 9/11, quando o suposto chefe do tráfico da Rocinha conhecido como Nem foi preso, muito foi dito acerca da sua tentativa de subornar o Batalhão do Choque e por outro lado, foi saudada a negativa dos soldados frente ao R$ 1 milhão oferecido. Porém no dia seguinte ao dia de sua prisão, Nem declarou que metade do lucro geral do tráfico era destinado para o “arrego”.

A polícia não está ali para combater o tráfico. Nas UPPs têm aparecido denúncias não só da existência de tráfico, mas de um mensalão que envolvia toda uma UPP de Santa Teresa, levando à cassação de todos os policiais. Esta ligação e papel da polícia em armar e organizar o tráfico e também as milícias não é algo feito por gatos pingados, mas algo que atravessa toda sua estrutura inclusive a alta cúpula. Nos últimos 5 anos caíram 2 comandantes da polícia civil e 1 comandante da polícia militar ou por constituir milícias (Álvaro Lins), ou por manter relação pessoal com milicianos (como foi o caso de Mario Sérgio Duarte que indicou o comandante de São Gonçalo que foi mandante do assassinato da juíza Patrícia Acioli) ou por impedir que fossem realizadas investigações sobre a ligação da polícia com o tráfico e com as milícias (Allan Turnowski).

A tentativa de legitimar as forças policiais com as UPPs encobre a mais absoluta conivência e auxílio do Estado na formação de mílicias (muito mais que o governo Cabral pois opositores como Garotinho e César Maia também são ou foram elogiosos às milícias quando eram governo).

O poder das milícias hoje é maior que o poder do próprio tráfico, e segundo a Anistia Internacional, elas têm o controle de cerca de 45% das favelas do Rio [7], sendo o principal esquema de crime organizado na cidade. Sua força junto a cúpula policial, a partir de deputados, vereadores e todo aparelho do Estado lhes permite não só assassinar uma juíza como ameaçar a vida do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) [8].

A mobilização dos estudantes na USP mostra: é necessário e é possível lutar pela retirada da polícia das periferias, morros e favelas!

A segurança da população não virá por meio do Estado e dos governos, e muito menos de seus aparatos repressivos que são parte constitutiva da violência urbana, e tem como princípio defender com unhas e dentes a propriedade privada e reprimir as mobilizações estudantis, operárias e populares. A segurança será obra de nossas próprias mãos: da juventude combativa, da classe trabalhadora e do povo pobre que lutaremos de forma intransigente pelo fim da exploração e de qualquer forma de opressão contra os negros, mulheres e homossexuais!

A luta dos estudantes da USP deve ser vista com um grande exemplo para todos aqueles que, como nós, vemos as mazelas do capitalismo nas favelas como parte constitutiva da violência. A luta dos estudantes pela retirada da polícia das universidades que ganha a massa dos estudantes, bem como a denúncia de seu papel nas periferias, morros e favelas, feita por uma ala minoritária mas de centenas, é um grande passo adiante em meio à situação nacional. Isso porque no projeto de país lulista (para a burguesia, contra os trabalhadores), do trabalho precário e terceirizado, dos acidentes de trabalho, das privatizações, que tem continuidade e aprofundamento garantido por Dilma Rousseff, junto de Sergio Cabral, é um projeto erguido sobre um discurso de “Brasil potência” cuja venda de uma idéia de “cidadania-repressão” (via UPPs) para os pobres e moradores de favelas é acompanhada de uma idéia de melhoria gradual nas condições de vida (que pode se dar até então em base ao endividamento, que diante da crise capitalista internacional não pode se sustentar), não vinha encontrando contestação, até então, em parcelas da sociedade.

Esta conquista que a burguesia teve no último período a partir de intensa campanha midiática e também a partir das UPPs também significou um retrocesso da esquerda de posições históricas sobre a polícia nos morros e favelas. A posição de fora polícia das universidades, periferias, morros e favelas é um grande passo que os estudantes estão colocando! É nesse sentido que chamamos todas as entidades estudantis, organismos de direitos humanos, grupos de defesa do movimento negro, partidos políticos da esquerda anti-governista, sindicatos e centrais sindicais a lutarmos com todas as forças em defesa irrestrita dos 73 presos políticos da USP. Sua perseguição política é funcional a continuidade de uma polícia assassina e repressora nos morros e favelas. Sua defesa é parte da luta pela imediata retirada do aparato repressivo das universidades, morros e favelas! O PSOL e Marcelo Freixo precisam abandonar suas meias palavras sobre as UPPs ora criticando-nas, ora pedindo melhorias. Discursos oblíquos não ajudam quando centenas de milhares estão sendo reprimidos e a toda a cidade alterada. É preciso dizer claramente: Abaixo as UPPs!

É preciso retomar as posições contra a polícia nas periferias, morros e favelas. A realidade com os esculachos, roubos e repressão diárias mostram a necessidade desta posição intransigente, e os estudantes da USP mostram como não só é necessário, mas como é possível este questionamento!

- Retirada imediata dos inquéritos aos 73 presos políticos de Rodas na USP! Abaixo o convênio USP- PM!

Pela retirada imediata de todas as tropas policiais e militares dos morros e favelas! Abaixo às UPPs!

Que os sindicatos, centrais sindicais e organizações populares iniciem imediatamente uma campanha pela retirada incondicional de todas tropas militares e policiais dos morros e favelas! Na mobilização ativa desta campanha propor comitês de autodefesa contra a violência policial e do tráfico!

Pela expropriação das propriedades e contas bancárias de traficantes e seus comparsas de colarinho branco e sua imediata reversão para um plano de obras públicas para construção de moradias, escolas, postos de saúde, transporte público, saneamento básico!

Diante dos anúncios de roubo, humilhação e abuso contra os moradores, pela imediata punição dos responsáveis e seus mandantes! Que o Estado faça o ressarcimento de todos os prejuízos causados por suas forças de repressão!

Retirada das tropas brasileiras do Haiti! Chega de escola de repressão ao povo!

Pela imediata reversão das centenas de milhões de reais gastos com as tropas no Haiti e com esta operação militar em um plano de obras públicas controlado pelos sindicatos e associações de moradores para garantir emprego, moradia, educação, transporte, saúde e lazer dignos.

Contra o controle de nossos corpos pelo Estado! Legalização irrestrita de todas drogas!

[1] Para mais informação ver http://www.ler-qi.org/spip.php?article2923

[2] Segundo o site UPP Repórter, o governo do estado do Rio está investindo cerca de 15 milhões na qualificação da Academia de Polícia, com o intuito de que até 2014 sejam formados nada menos que 60 mil policiais no Estado. http://upprj.com/wp/?page_id=20. Com isto o Estado do Rio de Janeiro, com uma população de cerca de 1/3 da paulista terá uma polícia 40% maior que aquela, ou, seja uma proporção quatro vezes maior por habitante.

[3] “Orçamento Consolidado”, disponível em: http://download.rj.gov.br/documentos/10112/186190/DLFE-28719.pdf/Livro_LOA_2011.pdf

[4] http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/04/29/ult23u2093.jhtm

[5] Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/11/mercado-ve-imoveis-mais-caros-em-sao-conrado-com-upp-da-rocinha.html.

[6] Disponível em:http://urutau.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/Uploads/ResumoJul11.pdf

[7] Matéria disponível em: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5451968-EI6578,00.html.

[8] Para maiores informações sobre as ameaças a este deputado, bem como o chamado que a LER-QI faz para que as próprias organizações de massa, e não a polícia como é atualmente, defendam Freixo ver: http://www.ler-qi.org/spip.php?article3184





                                                                                                    
                                                                                                   Revista Nação Brasil ou
                                                                                                  Conjuntura Internacional

 
Revista Nação Brasil Número: 142


Baixada Fluminense: Violência e Poder




Com a volta da democracia os donos de jornais, rádio e televisões orientaram seus editores para que a vida nas favelas fosse associada ao conceito de gueto onde vive olócus do mal.

Neste âmbito o conceituado Jornal do Brasil, em 18 de fevereiro de 1994 publicava o editorial ?Vacilou, Dançou!? que podemos considerar o molde de um estilo de jornalismo ruim, racista e, sobretudo, reacionário. Um estilo cujo lead pode resumir-se às seguintes frases: (...) De dentro dos morros para fora se irradia nova ética de sangue e violência!(...) Das favelas de onde se espraiam os acenos da marginalização (...) Tiroteios, guerras de quadrilhas, desrespeito á propriedade particular...(...) Os favelados serão maioria, se o fluxo não for detido!

Afinal, esta é a grande preocupação da mídia e das elites: deter uma potencial maioria que cresce nas favelas e por isso já não é mais suficiente mantê-la á margem da sociedade e da própria democracia. É preciso uma guerra de baixa intensidade para eliminar o ?excedente?.

Foi nesta óptica que os grupos de poder, que exercem o controle político do Estado, voltaram a legitimar a prática da violência, burlando silenciosamente as leis do Estado de Direito. Assim depois dos ?esquadrões da morte? da época da ditadura, vieram os ?grupos de extermínios?, a seguir foi a vez dos ?matadores?. Enfim como escreveu o professor José Cláudio Souza Alves em seu livro Dos Barões ao Extermínio ?...a canalha e a barbárie continuam presentes no dia-a-dia do Brasil?.






O livro de José Cláudio é uma profunda análise sobre a ?história da violência na Baixada Fluminense?, por isso ele mereceu ser capa da edição 142 da Revista Nação Brasil e objeto de uma longa e interessante entrevista que publicamos, na esperança de poder abrir na esquerda (ou o que sobra dela) o debate sobre a questão da violência e suas interligações com o mundo da política e do empresariado. (A. Lollo)







A Entrevista de Achille Lollo




RNB ? Em que época você começou a escrever o livro ?Dos Barões ao Extermínio?e com qual objetivo político?

José Cláudio Souza Alves: «Em 1993 eu tinha lido o livro de Mike Davis, ?Cidade de Quartzo?, onde ele vai analisar o passado de Los Angeles e reconstruir a lógica de poder dos grupos políticos que governaram a cidade. Eu fiquei muito impressionado com a metodologia de análise de Mike Davis que, inclusive, é um intelectual de esquerda.

Este livro ajudou a costurar minha idéia de estudar a violência na Baixada Fluminense, onde eu comecei a militar em 1983, primeiro na Igreja Católica, depois nos movimentos de bairro e no PT do qual sou um dos fundadores naquela região. Porém, tomei a decisão de estudar a violência na Baixada quando ocorreu a chacina em Vigário Geral, em 30 de agosto de 1993, onde eu morava naquela época.

Tudo se encaixou. Por isso o objetivo do livro é entender como se reproduzia em uma região como a Baixada Fluminense o conceito e a prática da violência. Para ter uma idéia, hoje, a cidade do Rio de Janeiro baixou seu nível de violência que varia entre 43-45 mortes por 100.000 habitantes. Por sua parte, na Baixada Fluminense, há mais de duas décadas este nível permanece num patamar em torno de 74 e 76 mortes por 100.000 habitantes».

RNB ? Quando você fala em mortes se refere a assassinatos e homicídios?

José Cláudio Souza Alves: «Sim, estudei os homicídios dolosos que nas estatísticas e nos relatórios do Governo do estado ou são escamoteados ou não são verdadeiros. Quando se começa a estudar a realidade da violência, que é muito brutal, se descobre, também, que existem inúmeras formas de se esconder os números».

RNB ? A Baixada Fluminense sempre foi uma região onde o poder político legitimava a violência e vice-versa. O filme sobre Tenório Cavalcanti é um exemplo. Como você trabalhou este contexto ao longo do tempo e do espaço?

José Cláudio Souza Alves: «Tentei entender a região e descobri que esse padrão de violência absoluto vem se mantendo porque foi construído ao longo do tempo em função da estruturação do poder político local. Por isso a existência dos matadores de aluguel, dos grupos de extermínio não se dá apenas no período da Ditadura Militar.

Na realidade podemos afirmar que na Baixada Fluminense há uma dramática tradição de violência organizada que começa muito antes, já no fim do Período Colonial, para depois se afirmar, no início dos anos 30, quando figuras políticas como Tenório Cavalcanti, Getúlio de Moura, construíram a sua base de poder político na Baixada como se o poder fosse um produto para sua pequena empresa política calcada na estrutura da violência.

Ao entender a lógica histórica da violência na Baixada podemos entender por que, hoje, muitos promotores públicos dizem que na Baixada os matadores estão no poder».

RNB ? Por que muitos apontam que o ex-governador, Marcelo Alencar, e o prefeito de Caxias, Zito (ambos do PSDB) são donos de poderosos clãs políticos que estendem seus tentáculos mafiosos em toda a Baixada?

José Cláudio Souza Alves: «No livro eu tento mostrar que para se eleger, em 1994, Fernando Henrique legitimou uma aliança política que não se limitou só a Marcelo Alencar, mas estreitou-se também com figuras como Zito e Joca. Este último, misteriosamente assassinado. Eu tento mostrar como aconteceu esta costura, uma vez que a Baixada Fluminense com os oito municípios da Região Oeste (Duque de Caxias, São João de Meriti, Nova Iguaçu, Japeri, Queimados, Belford Roxo, Nilópolis e Mesquita) corresponde, hoje, a quase 24% do eleitorado do Estado do Rio de Janeiro. Juntando este as prefeituras de Guapimirim, Magé, Paracambi, Itaguaí, a Baixada Fluminense, sempre concentrou, ao longo da história do Brasil, um dos maiores currais eleitorais.

Agora, eu acho que a costura disso tudo começou em 1993 no início do Governo de Marcelo Alencar no estado do Rio de Janeiro, quando o PSDB estava em Nova Iguaçu com Nelson Bornier, o PL e o Joca controlavam Belford Roxo e Zito era vereador em Caxias, para depois se eleger deputado estadual em 1994.

Foi nesse cenário que o PSDB começa a articular a manutenção do poder na Baixada recorrendo a pessoas acusadas de estarem diretamente envolvidas com o crime organizado ou com os grupos de extermínio na região».

RNB ? Houve, de fato, algumas prisões decretadas pela justiça contra Zito?

José Cláudio Souza Alves: «Eu entrevistei a promotora Tânia Maria Sales Moreira, responsável pelo Ministério Público, na cidade de Duque de Caxias até 1998. Ela confirmou que Zito foi preso duas vezes antes da campanha eleitoral de 1994, quando ele é preso pela terceira vez por conta do assassinato de um subsecretário de serviço público na cidade de Duque de Caxias.

Na última vez em que foi preso ele estava a caminho do aeroporto para receber o Fernando Henrique Cardoso e levá-lo ao seu último comício. Lembro que em toda a cidade havia outdoors com o trio: Zito, FHC e Marcelo Alencar, portanto sua prisão teria sido um desastre para FHC. Talvez, por isso Zito ficou detido só algumas horas uma vez que saiu um hábeas corpus para ele subir no palanque com FHC e Marcelo no final do comício.

Depois de se eleger, FHC declarou publicamente que queria o PSDB com cheiro de povo, enfim um partido popular construído com homens como Zito. Uma aliança que se repete ao longo da história do Brasil entre os notáveis ? representantes políticos das elites dominantes ? e a escória da política que lhe traz benefícios eleitorais».

RNB ? Parece ficção, ma a pequena empresa política de Zito calçada na estrutura da violência, agora virou um holding na Baixada conseguindo a eleição da viúva do Joca, de seus familiares, a distribuição de cargos entre os partidos e até o PT parece que entrou no ?esquema?. Afinal, tudo isso é ficção ou verdade?

José Cláudio Souza Alves: «As estatísticas dizem que Zito movimenta meio milhão de votos uma vez que ele se reelegeu em Duque de Caxias com 82% dos sufrágios. A esposa, Narriman Zito ? que pediu filiação ao PT ? é prefeita em Magé. O irmão, Valdir Zito, é prefeito de Belford Roxo e a filha foi eleita deputada estadual em São João de Meriti.

Apesar de Joca ter sido assassinado nada mudou, pois a viúva se reelegeu com o lema ?Maria Lúcia é Joca?, então Nelson Bornier, Zito e Maria Lúcia se tornam a nova base de entrada do PSDB de Marcelo Alencar nos três maiores colégios eleitorais da Baixada: Belford Roxo, Duque de Caxias e Nova Iguaçu.

Por isso, o programa Baixada Viva e depois o projeto de Despoluição da Baía de Guanabara transformam a empresa política de Zito em Holding ao vincular as obras de urbanização à política eleitoral. Por exemplo os outdoors do Baixada Viva eram pagos pelo próprio Zito. Foi neste âmbito que na relação Zito-Marcelo Alencar entra também o governo federal de FHC, visto que a Baixada Fluminense é uma região politicamente expressiva no cenário nacional.

Minhas pesquisas evidenciam que as provas cabais que os promotores apresentam ao longo do tempo desaparecem ou ficam minimizadas e nada acontece com os suspeitos de assassinatos.»

RNB ? Durante a Ditadura os grupos de extermínio, chamados esquadrões da morte, faziam o ?trabalho sujo? para a PM e o Exército. Infelizmente, a volta da democracia não levou a desmobilização destes grupos. Qual é a situação na Baixada? A matança de jovens negros continua?

José Cláudio Souza Alves: «A Baixada Fluminense, com suas cidades-dormitórios, o excesso de mão-de-obra barata e as indústrias de fundo-de-quintal são o suporte para a grande metrópole, Rio de Janeiro. Sem Baixada não haveria Rio Maravilha, Rio Solar e Zona Sul. O jornalista Zuenir Ventura chamou este grande binômio de ?Cidade Partida?. Mas eu não concordo, porque se trata de duas realidades conectadas, também, no sistema de violência organizada, quando com a formação da PM, em 1967, estreou o ?esquadrão da morte para caçar comunistas?.

Este contexto, permitiu à ditadura de livrar-se dos opositores políticos com mais facilidade e silêncio, além de criar um útil sistema de alianças políticas locais de que tanto Arena quanto setores do MDB se beneficiaram.

Praticamente foi com os Esquadrões da Morte que a Ditadura conseguiu reconfigurar o mapa político da Baixada.

A partir dos anos 80, na Baixada e no Rio de Janeiro, os grupos de extermínio sofrem a chamada ?autonomização?, isto é: os grupos passam a ser compostos não só por policiais militares, mas também por cidadãos, pessoas comuns que passam a ser arregimentadas para realizar ?operações de limpeza? nos diferentes bairros suburbanos ou favelas. É neste contexto que o número de ?matadores? aumentou, apesar deles manterem sempre uma vinculação com a Polícia Militar.

RNB ? Explique melhor o funcionamento do vínculo entre matadores, PM e quem os financia?

José Cláudio Souza Alves: «Em um primeiro momento era o Estado que, através do aparato da Polícia Militar, fazia a arregimentação dos matadores.

A seguir os diferentes grupos se ligaram às novas máfias políticas e vão se autonomizando em relação ao aparato policial, apesar de manter um vínculo com as estruturas de comando e da inteligência que lhe proporcionam proteção e cobertura.

Enquanto isso parcelas do poder político dão sustentação a uma parte do empresariado (do pequeno ao grande) que paga os grupos de extermínio para ter proteção ou fazer a dita ?limpeza de área? ou controlar áreas onde eles financiaram em campanhas eleitorais para governador, prefeito, deputado ou vereador.

Uma vez eleitos, esses políticos ficam calados, porque dependem da mesma base eleitoral, onde atuam os grupos de extermínio que são financiados pelos mesmos empresários que investiram nas campanhas eleitorais».

RNB ? Com a chegada do narcotráfico nas favelas da Baixada aconteceram mudanças?

José Cláudio Souza Alves: «A principal mudança se deu nos anos 90 quando se registrou um duplo fenômeno: os líderes dos grupos de extermínio passam a ser os novos políticos da região e, facilmente, chegaram ao poder na Baixada.

Desta maneira não precisam mais de intermediários políticos. Eles mesmos se transformam em políticos que ? no momento em que o narcotráfico se espalhava nas favelas e subúrbios da Baixada ? começaram a oferecer a segurança pública como se esta fosse um bem caro demais para as regiões pobres da Baixada.

Esta promessa, rapidamente foi uma credencial para ganhar votos. Juntaram a isso todas as práticas do populismo, tais como distribuir comida, introduzir serviços na área de saúde e farmácias, desviar verbas públicas para promover novas áreas comerciais e implantar escolas privadas também.

Enfim serviços, realizados com o financiamento público que viram a grande estrutura de clientelismo eleitoral.

Na Baixada havia regiões com um índice elevado de roubo, furtos e assalto, principalmente de comerciantes. Então quando esta nova ?classe política? chega ao poder logo realiza a eliminação dos pequenos marginais, nem sempre são bandidos profissionais, mas que na maioria são jovens negros. Não há um enfrentamento com o narcotráfico para disputa de áreas ou de influências».

RNB ? Explique porque a partir dos anos 90 os grupos dos matadores se preocupam mais com a construção de suas ?empresas políticas? na Baixada, enquanto setores da PM do Rio de Janeiro praticam massacres (Candelária, Acari, Vigário Geral) sem nenhum disfarce?

José Cláudio Souza Alves: «É necessário explicar que o produto que as ?empresas políticas? dos matadores da Baixada oferecem é a violência organizada dentro de padrões reservados de eliminação seletiva. Então, com a introdução dos cemitérios clandestinos falta a prova visual desta atividade.

O problema é que na Baixada, como no Rio de Janeiro, os índices de homicídios são os mesmos, mas a efetiva investigação destes crimes que ocorrem na Baixada é apenas 7,8%. Por exemplo as delegacias de Campo Grande investigam só 1,03% do total de homicídios.

Nestas condições o julgamento se torna difícil porque o promotor público precisa, antes de tudo, de testemunha do assassinato ou de provas cabais que identifiquem o responsável. É neste percurso que a estrutura das ?empresas políticas? dos matadores entram em ação despistando provas, intimidando ou até fazendo desaparecer testemunhos. Praticamente a partir da década de 90, no momento em que eles descobrem os meios para chegar ao poder, os matadores e suas estruturas operacionais utilizam táticas mais silenciosas e mais sofisticadas. Desta maneira desvia-se as denúncias da mídia.

Enquanto isso, nos anos 90, a violência policial explode no Rio de Janeiro e este é outro fenômeno. Com as chacinas da Candelária, Vigário Geral, Acari temos a fase dos massacres institucionais espetaculares onde a polícia atua sem nenhum disfarce. Não é mais o policial mascarado que atuava nos esquadrões da morte que usava o gorro quando devia tirar o preso da cela e matar a noite jogando o corpo em uma vala comum.

Não! Quem matou em Vigário Geral era a polícia uniformizada, com nome e dinstintivo que vai para a rua e vai cumprir as execuções sumárias. E somente cinco de um total de 40 policiais denunciados pelo Ministério foram condenados, dois cumprem pena e três estão soltos. Não há elementos específicos mas tudo indica que setores da Polícia Militar, ao retomar o papel de execução sumária quiseram dar um recado à sociedade. Inácio Cano do Iser, e Marcelo Freixo da Ong Justiça Global fizeram estudos nesta área, abordando também a situação das penitenciárias e as execuções sumárias cometidas.

Em 2002, o jornal ?O Dia? revelou que a Corregedoria da PM denunciou cerca de 300 policiais como participantes de grupos de extermínios. Este é um elemento positivo, mesmo assim o aparato ilegal que pratica a eliminação sumária continua atuando.

Isso também funciona para o lado do tráfico de drogas».

RNB ?É evidente que a prática do matador é a execução do pequeno delinqüente. Neste sentido, como se relacionam os novos clãs mafiosos da Baixada Fluminense (muitos dos quais estão ligados aos grupos de extermínio) como se relacionam com o narcotráfico e os bandos de seqüestradores?

José Cláudio Souza Alves: «A justiça criou um processo de investigação, sobretudo, a partir de uma Comissão Especial de Investigação sobre Crimes na Baixada e à frente estava esta promotora que eu mencionei, a Tânia Maria Sales Moreira. E antes dela também tinha um promotor público na quarta vara criminal lá em Nova Iguaçu, José Pires Rodrigues. Todos eles chegaram à conclusão que estes grupos de extermínio jamais, em nenhum momento, tocam, arranham sequer a estrutura organizada, pesada do crime mesmo. Como você falou, os grandes traficantes, os grandes assaltantes, nunca foram tocados».

RNB ? E com os bicheiros, que tipo de relação existe?

José Cláudio Souza Alves: «Diria de extremo respeito. A contravenção, na verdade é a cúpula do crime organizado.

De fato até a ditadura, com sua moral patriótica, sequer arranhou a estrutura dos bicheiros, pelo contrário manteve intacta a estrutura do jogo do bicho porque eram estes que davam as informações das ruas. Qual era o melhor serviço de inteligência que poderia dar informações diárias sobre quem passava em certas ruas ou praças das principais cidades de todo o Brasil?

Ainda hoje fica difícil avaliar todas as conseqüências que surgiram com o estreitamento da aliança estratégica entre a contravenção e o Estado na época da ditadura militar»

RNB ? Você se refere à estrutura vertical do crime organizado que através da corrupção criou um poder paralelo no Brasil a partir do Rio de Janeiro?

José Cláudio Souza Alves: «Não! Essa é a tese que a Rede Globo construiu para justificar o assassinato do jornalista Tim Lopes.

Estou apontando para algo mais grave: é o próprio Estado que se constituiu no Brasil, que apareceu na Baixada, legitimando a vinculação com o crime e com a violência enquanto elementos ocultos empenhados na defesa do próprio Estado.

Não é o crime organizado que corrompeu as instituições. É, sim, a relação histórica que Estado, como poder público, construiu com o crime para promover formas de segurança necessárias para a manutenção da ordem em determinados momentos políticos.

É neste contexto que setores do aparato policial, da justiça, os políticos profissionais, os empresários, os comerciantes se relacionam com as estruturas do crime e se beneficiam dela, promovendo o crescimento dinâmico da estrutura do crime organizado dentro da estrutura porosa do Estado.

A corrupção é, apenas, uma forma de pagamento para serviços prestados. O problema é o tipo de relação que foi costurado entre setores do poder e crime organizado».

RNB ? Hoje, o narcotráfico entra nesta relação?

José Cláudio Souza Alves: «Hoje o problema é mais complexo, uma vez que há cada vez mais políticos que através do narcotráfico conseguem entrar nas favelas e fazer obras em troca de votos.

Assim o tráfico dá cobertura à campanha eleitoral para esse prefeito que já foi um ex-matador, vai fornecer ou indicar cabos eleitorais para ele, vai realizar festas na favela para ele e, antes de tudo vai impedir que candidatos da oposição ou concorrentes entrem na favela que se transforma em um curral eleitoral desse ex-matador cuja eleição é legitimada pelo Estado (polícia, justiça, justiça eleitoral, mídia, igrejas evangélicas etc). Conclusão: não há poder paralelo. É o próprio Estado que legitima a estrutura do crime organizado.

Alterar esse mecanismo exige uma vontade de transformações radicais, que o Estado, hoje, não tem, porque isto significa cortar a própria carne.

Os poucos que tentam fazer isso sofrem duras conseqüências. É risco de vida mesmo. 



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"   http://www.youtube.com/watch?v=ATr5pqRfc68&feature=player_embedded   "

É grande o número de casos de assassinatos de promotores públicos, de detetives, de políticos que passam a fazer um trabalho que se contrapõe a esta estrutura de poder. Na Baixada nos últimos cinco anos houve 22 assassinatos de políticos, na maioria a investigação não deu em nada!»

RNB ? É verdade que hoje estão aumentando os seqüestros de jovens pobres para alimentar a indústria dos órgãos vitais com córneas, corações, fígados, pâncreas, rins, medula. Por que ninguém fala disso?

José Cláudio Souza Alves: «A nossa classe dominante não tem nenhum problema em se vincular com a canalha, com matadores, com assassinos para obter o que ela deseja ou precisa. Comprar um coração ou um fígado virou um negócio altamente lucrativo não só no Brasil mas em todos os países ricos.

Na Europa desaparecem muitos ?imigrados? africanos. Nos EUA a preferência é para os mexicanos que entram clandestinamente no país. A verdade é que nossa classe dominante é bárbara. A barbárie é ela».

RNB ? O PT analisou a questão da violência sempre com uma visão paternalista. Porém quando foi governo no Rio de Janeiro inventou o mito do antropólogo Luiz Eduardo Soares. Depois o Presidente Lula o mandou embora como se fosse algo descartável. Isso tudo não é contraditório?

José Cláudio Souza Alves: «Eu me considero esquerda, mas não me considero mais do PT. Como você falou, o PT não soube conceituar a questão da violência com seriedade suficiente.

Nas minhas pesquisas tento mostrar que a violência vai ter as suas conexões políticas. Mas ao campo majoritário do PT ? sobretudo o PT do Rio de janeiro ? não interessa aprofundar o tema porque seria um ônus há mais para este setor partidário que passou a hegemonizar o partido e a conquistar prefeituras sem olhar com quem fazia alianças. Era o poder pelo poder e nada mais.

O antropólogo Luis Eduardo Soares representa uma certa intelectualidade ligada a Benedita que concordou com a intervenção (refere-se a época em que o PT nacional interviu sob a decisão do PT fluminense de ter candidatura própria) para favorecer a eleição de Garotinho.

Não é por acaso que Luis Eduardo, já no governo Lula limitava seu olhar exclusivamente à questão do gerenciamento da polícia, sonhando equipá-la tipo a polícia de Nova York. Isto é o grande engodo da classe média que quer proteção, quer segurança e para isso está disposta a aceitar o ?Tolerância Zero?, que nos EUA é a prática indiscriminada da violência policial contra camadas sociais suspeitas de saírem de seus guetos para atacar a propriedade privada.

No caso do Brasil esta teoria é insustentável, porque identificaria a maioria dos pobres como potenciais criminosos. Por outro lado, Luis Eduardo Soares caiu em desgraça porque quando ele se torna Secretário Nacional de Segurança Pública priorizou a criação do Sistema Único de Segurança Pública, que, na realidade significou dar dinheiro para os governos equiparem a aparelhagem de suas polícias sem que isso viesse a modificar a complexidade social da violência. Praticamente foi um ato de continuação ao que era feito na era FHC.

Agora, é bom dizer que Luis Eduardo foi literalmente queimado não só pelos equívocos que cometeu, mas porque se chocou, sem ter o devido suporte, com pessoas que dentro do governo federal que têm seus interesses montados para manter a estrutura de controle sobre o aparato policial e os fundos públicos.»

RNB ? Você acredita que o governo Lula vai investir na luta contra a violência a partir do lado social, como previa o Instituto da Cidadania e como o deputado Biscaia propõe?

José Cláudio Souza Alves: «Tudo o que está acontecendo no governo é um desdobramento natural do que o PT se transformou ao longo deste período e das vinculações que ele foi construindo. Este governo, sobretudo com a aliança com o PL e agora com o PMDB, não tem mais as condições históricas, acúmulo, vontade e determinação política de se fazer uma alteração real do quadro da violência no Brasil.

Na verdade, o PT não tem mais condições reais de fazer essas modificações, uma vez que abdicou disso há muito tempo, sobretudo, a partir da sua política econômica.

O governo Lula não vai investir nesta área da forma como ele sempre pensou investir porque o projeto político já é outro.

O que vai acontecer ao governo Lula é tentar se perpetuar fazendo o mesmo caminho que o PSDB percorreu, fazendo aliança com esses setores que são os mais abomináveis deste país e que têm uma estrutura de poder calcada no crime, na violência, no medo. A mulher do Zito já tem carteira do PT ou não?»

RNB ? Gostaria de lembrar que o deputado do PT Lindberg Farias e seus associados acreditam que é possível dividir a direita da Baixada Fluminense ao fechar uma aliança com Marcelo Alencar do PSDB e com ele fazer um governo ?progressista? em Nova Iguaçu. Você acha possível fazer uma aliança deste tipo e quais são os riscos que a esquerda socialista corre?

José Cláudio Souza Alves: «Primeiro, quero deixar claro que Lindberg Farias, pelo pouco que me consta, não tem nada a ver com a esquerda do PT. Ele, para estar na mídia, iniciou com a Heloísa Helena, com o Babá e a Luciana Genro um movimento de oposição à Reforma da Previdência. No meio do caminho, mudou de opinião, sem dar nenhuma explicação se encostou ao setor majoritário e decidiu disputar a Prefeitura de Nova Iguaçu.

Os estudantes das Universidades Públicas que o elegeram se decepcionaram amargamente, por isto ele simplesmente está procurando outra praia política para se reeleger. Essa aliança que ele fez em Nova Iguaçu, passando pelo Itamar Serpa, que é um deputado federal do PSDB, a meu ver é justamente a farsa que o PT hoje está assumindo em termos nacionais, e não só em Nova Iguaçu.

O Lindberg é apenas a repetição de uma fórmula. O PT, hoje, tem em seus quadros Narriman Zito dizendo que esse seria o caminho de ampliar, com os setores mais ?democráticos?. Esta posição é um equívoco porque Marcelo Alencar, Itamar Serpa, Narriman Zito, não são democráticos. Elas têm vinculação direta com essa estrutura de poder, de domínio, que é calcada no binômio que é clientelismo de um lado e/ou violência de outro.

Eu conheço este pessoal do PT que fala em governo ?progressista? com o PSDB e por isso reafirmo que eles estão cometendo um grande equívoco. É uma política suicida.

As elites, o narcotráfico, os ex-matadores querem comprar o PT porque esta é a melhor solução para consolidar, hoje, sua estrutura de poder. Justificar as alianças com a canalha dizendo que assim vão transformar as eleições municipais num referendo para a reeleição do Lula, a meu ver é um absoluto equívoco.

O clientelismo é poderosíssimo. Estes setores ligados a Marcelo Alencar, por tudo aquilo que fizeram na Baixada Fluminense, são os mais danosos porque montaram uma estrutura de clientelismo poderosa com vínculos estaduais e federais, convivem com o narcotráfico e o crime organizado e com os ex-matadores. Criaram uma estrutura de controle político com a qual dominam a política local, inclusive em função do medo e da corrupção.

Para a esquerda socialista a consolidação da aliança política de Lindberg com Marcelo Alencar é um equivocado retrocesso, onde se nega o passado e se aceita conviver com o que há de pior na Baixada Fluminense.

Legendas

O livro de José Cláudio Souza Alves Dos Barões ao Extermínio - Uma história da violência na Baixada Fluminense, foi publicado com o apoio do SEPE

Sem a mobilização popular e sem radicais reformas instituicionais o governo Lula nunca vai poder acabar com a estrutura do terror. Aliás, pensando em 2006 e seu projeto de reeleição, será que ele quer acabar com toda essa podridão entre política e criminalidade? (F. Chavez)

O Brasil, e em particular a cidade do Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense apresentam um número de assassinatos que é superior as baixas que os invasores norte-americanos tiveram no Iraque e no Afeganistão! Só a Colômbia, com sua guerra civil, ainda mata mais! (Arq. Adia/A. Durão)

Numa sociedade excludente e sem alternativas, o sonho da maioria dos garotos de rua é se tornar ?gerente? da boca de fumo. (J. Nunes/Prisma)

Numa sociedade excludente e sem alternativas como a nossa, o sonho da maioria dos garotos de rua é se tornar ?gerente? da boca de fumo. (J. Nunes/Prisma)

É neste cenário de pobreza, de sujeira, de ausência da sociedade civil, que os jovens das favelas procuram os empregos do narcotráfico, ganhando mais que seus pais! (J. Nunes/Prisma)



http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/04/312662.shtml


Violência recíproca, poder atribuído: aspectos do mecanismo expiatório

Os fenômenos coletivos de expiação, de eleição e vitimação de bodes

expiatórios, revelam modos de manejo da violência e de percepção de poder que

apontam, por seu dinamismo e complexidade, para o quanto as próprias noções de

violência e poder podem estar atravessadas por jogos de forças psíquicas particulares.

Partindo das idéias de René Girard sobre o mecanismo expiatório, em especial a de

méconnaissance, busco aqui uma leitura psicanalítica tanto do desconhecimento do

caráter recíproco da violência quanto da atribuição imaginária de poder às vítimas

coletivas, típicos nestes fenômenos.

A análise da violência sob uma perspectiva transindividual, coletiva, como a que

foi proposta pelo pensador René Girard, ressalta alguns aspectos do tema que merecem

consideração psicanalítica. Girard construiu um entendimento da violência coletiva,

baseado em uma ampla gama de relatos etnológicos, que lança nova luz sobre um

extenso espectro de fenômenos, dos rituais de sacrifício mais arcaicos aos fenômenos de

perseguição e vitimação mais contemporâneos.

Partindo de um entendimento do desejo humano como essencialmente mimético,

imitativo – segundo o qual só se deseja o que um outro deseja ou possui, o que um outro

aponta como desejável – Girard descortina uma irredutível rivalidade nas relações

humanas, melhor exemplificada pela lógica da vingança, que tende a desenvolver-se

exponencialmente e só se resolve arrefecendo-se através do expediente expiatório, a

eleição de um bode expiatório, o que transforma a violência recíproca e generalizada em

violência unânime.

O apaziguamento e a integração que um linchamento promove baseia-se na

canalização da violência de todos em direção a um único alvo, que para polarizar todo o

ódio precisa passar a ser percebido como a fonte e causa única de toda violência,

tornando-se rival de cada um e de todos. Sendo alvo verdadeiramente unânime, não é

vingado por ninguém e, portanto, leva consigo, quando assassinado, a violência de

todos. Expia, de fato, todo o ódio.

Contra o eventual retorno da violência generalizada trabalham inúmeros

mecanismos sacrificiais, entre eles todo um corpo de narrativas que opera, em variados

graus de inconsciência, reforçando a crença em uma causa única para o mal-estar

coletivo. Sendo este efeito alcançado principalmente pela imputação de potência

(nocividade, periculosidade) ao candidato a bode expiatório, podemos vislumbrar nesta

abordagem a possibilidade de entender não apenas a violência como conseqüência do

poder, mas também, em um nível mais elementar, a própria construção do poder como

uma medida profilática, de manejo da violência.

Um conceito importante que atravessa a obra de Girard é o de méconnaissance,

termo que foi traduzido como ‘desconhecimento’, mas que remete mais exatamente a

uma percepção parcial e distorcida do que ocorre em um processo expiatório por parte

daqueles que o vivenciam e dele participam.

Em relação à violência a méconnaissance age no sentido de rejeitá-la para fora,

de si ou da humanidade como um todo. Este é o movimento que institui o sagrado, que

não passa de violência desumanizada, considerada como exterior, alheia ao homem.

Mas esta espécie de rejeição também participa tanto da escalada da má reciprocidade

vingativa – cada rival percebendo o outro como a causa de toda hostilidade entre eles –

quanto da convergência unânime em direção a um bode expiatório específico.

Sob uma ótica psicanalítica este movimento de exteriorização implicado na

méconnaissance pode ser entendido de duas formas: como um não-reconhecimento de

pulsões destrutivas que foram ou são passíveis de inscrição, representação – mecanismo

afim à projeção, decorrente de conflitos psíquicos – ou como um desconhecimento mais

arcaico, uma exclusão mais fundamental de uma violência que nem mesmo pôde ser

minimamente ligada a representações e que por esta incapacidade só pode ser percebida,

desde sempre, como alheia, estranha – a dinâmica da Verwerfung ou rejeição,

fundamento dos fenômenos alucinatórios, a que Freud nos remete ao final de sua análise

do caso Schreber.

Girard, ao referir-se à exteriorização da violência, usa termos como rejeição e

projeção sem diferenciá-los, mas fazendo referência ora a um mecanismo já organizado

em torno de um outro específico como destino certo, ora a uma percepção da violência

como mal misterioso e difuso, uma ameaça sempre externa, alheia, mas cuja fonte não

tem necessariamente contornos nítidos. Estas duas modalidades de exteriorização não

chegam a merecer nomes distintos, talvez por serem partes do mesmo processo,

diferindo apenas em relação ao momento do ciclo de crise e expiação durante o qual

surgem e atuam.

A méconnaissance incide também sobre o aspecto do processo expiatório que

chega mais perto de ser o mais crucial: trata-se do “elemento de arbitrariedade na

seleção da vítima” (Girard, 1990 [1972], p. 392). Toda expiação, desde as mais

originárias, baseia-se em um deslocamento: a vítima coletiva sempre é um substituto, o

que significa dizer que ela representa o agrupamento inteiro, ou a violência de cada um

dos linchadores. Este é o ponto em que o desconhecimento age mais intensamente, na

substituição sacrificial.

O que está em questão neste desconhecimento não é a inocência de uma vítima

coletiva específica, já que uma evidência deste tipo não causa nenhum curto-circuito no

processo expiatório, não impede que a violência deslize e seja imputada a um novo

substituto. O objeto do desconhecimento é a substitutibilidade em si, ou seja, o fato de

qualquer bode expiatório participar da violência humana tanto quanto qualquer outro

membro da comunidade. O que se inverte através deste expediente é a “relação entre a

situação global da sociedade e a transgressão individual. [...] Real ou não, a

responsabilidade das vítimas sofre o mesmo engrandecimento fantástico” (Girard, 2004

[1982], p. 30).

Os registros de experiências expiatórias são necessariamente atravessadas pela

méconnaissance. Se a vítima é verdadeiramente unânime, os relatos e narrativas

surgidos nesse contexto portarão o selo do desconhecimento que permitiu tal

unanimidade. Das distorções características desta espécie de discurso, que ao mesmo

tempo decorre da méconnaissance e a perpetua, a mais marcante é a transfiguração da

vítima, o exagero de sua potência e nocividade, o que permite inclusive que em algumas

destas narrativas nada seja dissimulado em relação à violência unânime em si. Às

transfigurações Girard se refere pela expressão ‘representações persecutórias’, e as

identifica não só em relatos medievais de processos de bruxaria ou poemas do século

XIV onde a culpa dos judeus pela peste negra era dada como fato, mas também nos

mitos. Os crimes dos deuses, por exemplo, seriam os crimes dos quais vítimas

expiatórias teriam sido acusadas antes de seu linchamento e divinização.

Não é surpreendente que o Olimpo seja povoado de criaturas que exibem um

currículo repleto de estupros, assassinatos, parricídios e de incestos, sem contar os

atos de demência e bestialidade (Girard, 1990 [1972], p. 317).

O movimento geral destes discursos é o de deslocar o foco “da cidade que

expulsa seu katharma para este próprio katharma” (Girard, 1990 [1972], p. 367) através

da transfiguração promovida pela representação persecutória. O que se propaga é a

crença na culpabilidade da vítima, uma culpabilidade que levada às últimas

consequências visa denotá-la como o agente do processo inteiro, da crise à sua

resolução.

Para além de certo limiar de crença, o efeito de bode expiatório inverte

completamente as relações entre os perseguidores e sua vítima, e é essa inversão

que produz o sagrado, os antepassados fundantes e as divindades. Ela faz da

vítima, na realidade passiva, a única causa agente e onipotente diante de um grupo

que considera a si próprio como inteiramente agido (Girard, 2004 [1982], p. 61).

O que as transfigurações promovidas pela méconnaissance delineiam, pois, é

determinada tendência humana de exteriorização de causalidade que parece estar na

base dos fenômenos expiatórios e que implica em que a identificação do agente em uma

dada situação seja um trabalho psíquico. O agente, uma entidade mítica que está para

além do sujeito como tal, como sujeitado, não é dado, mas construído, negociado; este

aspecto do poder, a agência, depende de uma atribuição.

Isto aparece de forma caricatural na paranóia, particularmente nos delírios de

perseguição. A atribuição de agência que transforma o “eu o amo” em “ele me odeia e

me persegue” produz o protagonista da narrativa delirante, o perseguidor diante do qual

o paranóico se coloca na voz passiva, uma entidade encarnada em indivíduos concretos

que, no entanto, se revelam a um observador externo como os bodes expiatórios

particulares do delirante. Não são inexistentes ocasiões em que paranóicos passam ao

ato homicida imbuídos da certeza de que estão agindo por uma questão de necessidade,

numa defesa que lhes parece legítima.

O protagonista do delírio de Schreber parece ser uma imago paterna desdobrada

em uma série de substitutos, o que Freud percebeu e que motivou sua hipótese sobre a

homossexualidade do paranóico. No entanto, Lacan ressaltou que o deus de Schreber é

“assexuado e polissexuado ao mesmo tempo” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 119) e

portador de uma unidade tão fundamental que exclui qualquer possibilidade de

referência a um terceiro: “o que caracteriza o mundo de Schreber é que esse ele está

perdido, e que só o tu subsiste” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 119). Estas características

indicam que, aquém do pai imaginário, há um suporte mais arcaico para esta entidade, o

agente, uma experiência que parece preceder as relações triangulares e a relativa

deserotização da linguagem que caracteriza o funcionamento simbólico.

O deus de Schreber é “em primeiro lugar presença. E seu modo de presença é o

modo falante” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 146). Sustenta um discurso permanente diante

do qual Schreber “se sente como alienado” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 145). Ele está

dolorosamente ciente de que é objeto de um discurso que relaciona tudo a ele, que o faz

notar que algo o visa e que atribui a ele sentimentos que não tem (Lacan, 2002

[1955-56], p. 157), ou seja, um discurso que o fala permanentemente. O testemunho que

Schreber nos oferece é o da heterogeneidade do eu, do insuportável fato de sermos

nascidos de uma atribuição de agência arcaica que vem de um Outro “radicalmente

estranho” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 157), diante do que e do qual somos em grande

parte impotentes. Basta lembrar como o cuidador de um bebê o interpreta, falando por

ele e em seu nome, uma prática ao mesmo tempo alienante e necessária à constituição

de um sujeito falante.

A saída desta posição de objeto parece consistir em vários graus e modalidades

de assunção desta agência atribuída, o que nos permite, no mínimo, um ponto de apoio

para atribuirmos, nós mesmos, agência a outrem. Assim, no caso de Schreber, a um

período “pré-psicótico” de “confusão profunda” (Lacan, 2002 [1955-56], p. 247), o

crepúsculo do mundo, momento em que se encontra mais objetificado, segue-se uma

progressiva organização do delírio em torno de um perseguidor que funciona como pólo

expiatório. Uma vez inaugurado este lugar, ele poderá ser ocupado por imagos maternas

ou paternas, por Deus, pelo Destino, e por toda espécie de bode expiatório – substitutos

pálidos (atamancados às três pancadas, diria Schreber) do agente primordial, a

alteridade radical arcaica.

Lacan nos faz perceber ainda que esta agência atribuída, fundamento dos

fenômenos expiatórios, propicia também o mimetismo do desejo, já que tem um

correspondente psicanalítico preciso no conceito de falo. Este termo está carregado de

conotações referentes a dinâmicas algo tardias, imediatamente pré-genitais, mas ele se

aproxima muito das significações que orbitam a arcaica agência atribuída. Talvez

simplesmente traduza para um vocabulário, uma lógica e um imaginário proto-genitais

conflitos dos mais arcaicos.

O que está em jogo na dinâmica fálica, diz Lacan, é o “objeto viril” (Lacan,

2002 [1955-56], p. 351) – termo que nos remete à potência e a todo o espectro da

agência – um terceiro primitivo que a criança localiza muito cedo e atribui (de volta) à

mãe (Lacan, 2002 [1955-56], p. 358). Esta “falicização recíproca” se dá “numa situação

de conflito, e mesmo de alienação interna, cada um por seu lado” (Lacan, 2002

[1955-56], p. 358), já que o falo não tem função mediadora. Ao contrário, ele não está

entre, não pode ser partilhado ou compartilhado, mas “é vadio. Ele está alhures” (Lacan,

2002 [1955-56], p. 358). O falo, como a agência, é suposto, ou seja, só existe enquanto

atribuição.

A lógica fálica, como reinscrição da agência no registro da plenitude, ou seja, do

narcisismo secundário, no registro da objetalização da agência traduzida em um ter ou

não o falo, constitui o campo onde o mecanismo expiatório floresce. Da fascinação por

um modelo e suas posses – o mimetismo do desejo – ao progressivo deslocamento deste

interesse à potência percebida no modelo tornado rival – o desejo de apropriação da

violência mesma, em Girard – o que comanda o processo é a relação de cada envolvido

com este significante – o falo. No momento em que se faz representar por uma entidade

– via atribuição maciça de agência –, advém a representação persecutória da vítima

coletiva, transfigurada no que Girard chama de duplo monstruoso, tão potente e pleno

que ameaça a integridade e a própria existência de qualquer outra coisa.

A expiação, por sua vez, possivelmente representa e atua então a destruição do

falo, uma tentativa de exorcizar – fantasmática e temporariamente, é certo – a

impotência essencial de cada um, a distância intransponível entre o sujeito e a agência








Um comentário:

Anônimo disse...

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of remarks on "A CIDADE DO RIO E O RESTO DO ESTADO? FALA BAIXADA!". I do have a couple of questions
for you if it's allright. Is it only me or does it seem like a few of these remarks come across like they are coming from brain dead visitors? :-P And, if you are posting on other online social sites, I'd like to follow you.
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